Durante nossas longas carreiras como policiais federais, não raro nos deparamos com delinquentes – sejam eles contrabandistas, estelionatários ou traficantes de drogas – que, de tão abrangentes, diversificados e ativos em suas respectivas práticas criminosas, acabam sendo alvo de duas (ou até três) investigações estanques, num mesmo espaço temporal, conduzidas em mais de uma unidade policial.
Muitas vezes uma operação de uma equipe policial atropela o trabalho de outra; em outras ocasiões essa convergência de ações pode apresentar caráter sinérgico, e acaba, felizmente, por catalisar e fortalecer o produto da missão de polícia judiciária: a produção de provas perante a autoridade judiciária.
O ministro do Meio Ambiente Ricardo Salles, alvejado nessa quarta-feira, 19, pela Operação Akuanduba, da Polícia Federal, pode ser um bom exemplo de um desses peixes que são fisgados por dois anzóis, quase ao mesmo tempo, por duas investigações iniciadas em razão de condutas distintas, levadas a efeito em localidades distintas, mas que em determinado momento se encontraram, numa curiosa relação de causa e efeito.
No caso em questão, temos o inquérito conduzido na PF do Distrito Federal pelo delegado Franco Perazzoni (que originou a própria Akuanduba) e os inquéritos presididos na PF do Amazonas pelo delegado Alexandre Saraiva (que originaram a Operação Androanthus), que deram azo à notícia crime enviada por Saraiva ao Supremo Tribunal Federal, contra o ministro Salles, hoje distribuída para a Ministra Carmem Lúcia do Supremo Tribunal Federal.
Grosso modo, o que trabalho do delegado Perazzoni assinalou, a partir de importante cooperação internacional em matéria criminal, capitaneada pelo Special Agent Bryan Landry, titular da adidância do United States Fish & Wildilfe Service – estabelecida na embaixada americana em Brasília -, foi a existência de 8.600 cargas de madeira ilegal nos EUA, cuja saída de nosso país teria sido facilitada pelo desmonte que Salles operou na fiscalização do IBAMA no Porto de Vila do Conde em Belém do Pará.
O inquérito do Delegado Perazzoni percebeu a porteira escancarando para passagem da boiada exatamente na revogação da Instrução Normativa (IN) 15/2011 do IBAMA, ocorrida por intermédio de um “despacho interpretativo” da lavra de seu presidente, datado de 26 de fevereiro de 2020, quando começava a pandemia do coronavírus no Brasil.
Com essa decisão, os produtos florestais passaram a ser tão somente acompanhados de documento de origem florestal (DOF), que serve, na prática, apenas para que a madeira seja transportada até o porto, enquanto a instrução normativa revogada previa uma autorização para a efetiva exportação.
Pois bem, a investigação de Perazzoni, em razão do foro privilegiado do seu alvo principal – o hoje ainda ministro Ricardo Salles -, encontra-se no Supremo Tribunal Federal, com o Ministro Alexandre de Moraes, magistrado que assinou as ordens de busca e autorizações de quebra de sigilos em desfavor de Salles et caterva.
A “correria” que Salles empreendeu no Pará, para liberar a madeira apreendida na Operação Androanthus (“correria” essa que foi observada, e identificada pelo Delegado Saraiva como advocacia administrativa) ocorreu exatamente para que o produto florestal passasse no fast track ilegal – e criminoso – que por sua vez é o objeto da investigação do delegado Perazzoni, e que foi assinalada como facilitação de contrabando.
Duas situações distintas, sobre delitos perpetrados em lugares e tempos distintos, mas conexas entre si. A conexão ocorre pela titularidade de algumas condutas de Ricardo Salles e do presidente do IBAMA, entres outros atores; e há também empresas e instituições que de alguma forma se beneficiarem e protagonizaram as duas situações, como a AIMEX – Associação das Indústrias Exportadoras de Madeira do Estado do Pará, que congrega inúmeras madeireiras que foram alvo de ambas as ações.
Merece destaque que tanto Franco Perazzoni como Alexandre Saraiva são delegados federais que se especializaram na atividade de repressão aos crimes ambientais, com longas passagens por unidades que se encarregam dessa relevante missão, além de terem doutorado na área ambiental, representando inequivocamente dois capitais humanos para a Polícia Federal.
A DMAPH – Divisão de Repressão a Crimes Contra o Meio Ambiente e o Patrimônio Histórico, titularizada hoje por outro especialista, o delegado Rubens Lopes, que foi a unidade em que Perazzoni, Saraiva e muitos outros, como o próprio Rubens, fizeram escola, completa – nesse ano de 2021 – vinte anos de sua criação.
Foram duas décadas de realização de centenas de projetos importantes e operações repressivas, em que a Polícia Federal formou mulheres e homens que hoje combatem esse flagelo que ameaça o futuro da humanidade como um todo.
O crime ambiental no Brasil é uma atividade organizada, extremamente lucrativa e desgraçadamente destruidora. E há também, comprovadamente, um enorme esquema de proteção política, que favorece esses delinquentes, com a necessária imbricação com a criminalidade institucionalizada, essa já tão conhecida da nossa sociedade.
Nenhum governo – estadual ou federal – tem o direito de não se sensibilizar ou de se omitir em relação à proteção das nossas florestas.
A delinquência ambiental do andar de cima, como já descrevemos detalhadamente no passado, lança mão de figuras deletérias como a corrupção normativa, que consiste na elaboração e aprovação (ou revogação) de normas ambientais, por encomenda e à feição dos interesses dos criminosos.
Que a Polícia Federal siga seu caminho inabalável, protegendo, com suas investigações e operações repressivas, os bens, interesses e serviços da União.
E sempre é bom lembrar que a nossa natureza, as florestas e a fauna silvestre, muitas vezes não nos darão uma segunda chance. Muitos desses recursos, uma vez perdidos, estarão irremediavelmente perdidos para sempre.