Em 16 de agosto de 1819, cerca de 100 000 pessoas se reuniram na praça de St. Peter’s Field, em Manchester, para um comício em que oradores célebres falariam sobre reforma social — especificamente, a ampliação do direito ao voto, uma vez que o dever do imposto era já universal. Mas, em questão de momentos, a reunião pacífica virou um massacre, que os jornalistas presentes ao local, chocados, apelidaram de Peterloo, em referência à sangrenta Batalha de Waterloo, de 1815, na qual a Inglaterra derrotara a França de Napoleão Bonaparte. Aqui, porém, os soldados estavam atacando não uma força inimiga, mas os próprios cidadãos. Como se chegou até ali é do que se ocupa o notável Peterloo (Inglaterra, 2018), do diretor inglês Mike Leigh, que estreia no país nesta quinta-feira.
Há muita contextualização histórica em Peterloo, além de verdadeiras maratonas de diálogos e discursos — ambas coisas que exigem plateias dispostas a colocar toda a sua atenção a serviço do filme. Mas ele tem considerável poder de ecoar no presente: o massacre de Manchester é um caso exemplar de como a miopia e a covardia políticas podem agravar um impasse até o ponto do insustentável. Não havia nada que as classes dominantes inglesas temessem mais que uma reprise em solo britânico da Revolução Francesa, de 1789, com sua abolição violenta da aristocracia e da monarquia. Exceto, talvez, uma reprise da Guerra de Independência americana, de 1775-1783, em que a coroa fora derrotada por sua ex-colônia em nome justamente dessa bandeira, a de que à taxação deve corresponder a representação política. O norte da Inglaterra era então o berço fervilhante da Revolução Industrial — junto com a qual nascera uma classe nova, o operariado, sujeita a níveis até ali inéditos de exploração, e clamorosa por direitos também inéditos. A fome, além disso, grassava. Medo e paranoia de um lado, insatisfação e aspiração do outro e, no meio deles, destacamentos de cavalaria com as baionetas à mostra: essa foi a receita do desastre.
No início, Leigh apresenta seus personagens em cenas tranquilas, de tons difusos, que conjuram na tela uma Inglaterra na qual sobrevive ainda o idílio pastoral dos séculos anteriores (o trabalho do cinegrafista Dick Pope é estupendo, rivalizando com suas conquistas em outros filmes de Leigh, como Topsy-Turvy e Sr. Turner). Aos poucos, o conjunto vai ganhando em colorido, dinâmica e vibração — até culminar no caos e no pavor do massacre. O eixo que orienta essa progressão, porém, é a palavra: do cuidado com que parte do elenco reproduz os antigos dialetos do Norte inglês à beleza da oratória de ativistas como Henry Hunt (Rory Kinnear), Peterloo é tão imersivo para os ouvidos quanto para os olhos e o pensamento.
Publicado em VEJA de 11 de setembro de 2019, edição nº 2651