O palco e os bastidores.
Em Downton Abbey, a série inglesa que pode causar vício grave, a vida dos patrões é a novela a que a criadagem ao mesmo tempo assiste e produz.
Robert, o conde de Grantham, baqueia com a notícia do naufrágio do Titanic: no navio viajavam não apenas vários amigos, como também seu primo mais próximo. Ou seja, lá se foi o herdeiro de Downton Abbey, a imensa propriedade de Robert – e, com ele, a única chance de que Downton permanecesse entre as filhas de Robert: o primo estava noivo de Mary, a mais velha. (Era então comum que o patrimônio só pudesse ser transmitido pela linha masculina.) Robert e a mulher se angustiam; Mary manifesta apenas sua habitual indiferença, já que a união seria de conveniência e nada mais; mas os porões e sótãos de Downton fervilham com esses desenvolvimentos dramáticos. O mordomo, a governanta, a cozinheira e a legião de camareiras, valetes e empregadas têm todos uma opinião – sobre o que será de Downton, sobre a frieza de Mary, sobre as estratégias que Lord Robert deve adotar. Em Downton Abbey, a vida dos patrões é um espetáculo (nos dois sentidos) no qual os empregados são tanto plateia como equipe técnica, por assim dizer: são eles que arrumam o palco e cuidam dos bastidores para que sua novela preferida se desenrole sem gafes nem tropeços.
Downton Abbey, avise-se, pode virar vício grave. Na Inglaterra, onde minisséries de época são produzidas às dúzias, ela ainda assim é o programa dramático mais visto dos últimos oito anos (tanto que se tornou série de fato, com a terceira temporada em gravação neste momento). Nos Estados Unidos, onde vai ao ar pelo canal público PBS, de minguada audiência, arrebatou mais de 5 milhões de espectadores: as aventuras de Mary, Edith e Sybil, as três filhas do conde, bateram no ibope as peripécias de outras notórias irmãs, as Kardashian, rainhas do reality show. Na receita do criador e roteirista Julian Fellowes entram vários ingredientes capazes de causar dependência. A começar pelo elenco, em que se destacam os esplêndidos Hugh Bonneville, como Lord Robert, e Maggie Smith, como sua mãe. Há ainda o melodrama romântico, que floresce tanto nos salões suntuosos de Downton quanto nos agitados porões que são o domínio dos serviçais. Há intriga, nas armações da mãe de Lord Robert e também nas disputas de poder entre os milimetricamente delimitados níveis hierárquicos da criadagem. Há cenários e figurinos de babar – e o fato de o castelo de Highclere, próximo a Londres, fornecer as ambientações externas e também os salões e quartos ocupados pelos fictícios Grantham só acrescenta ao realismo nostálgico: o conde e a condessa de Carnarvon, oitava geração no comando da propriedade desde 1679, só não deixam a equipe se valer de suas louças e cristais. Todo o resto que se vê em cena, dos cedros colossais do parque aos móveis e tapetes valiosíssimos, é autêntico: é assim que ainda hoje os Carnarvon vivem em Highclere (ainda que com muito menos empregados, é evidente).
Um detalhe digno de nota, porém, é que os ambientes em que circula a criadagem tiveram de ser construídos em estúdio. Desde esse apogeu festivo da aristocracia britânica, às vésperas da I Guerra, o país passou por convulsões sociais que praticamente extinguiram as então chamadas classes servis, e quase todos os aposentos de empregados de Highclere foram transformados. Eis aí o fermento que fez a receita de Julian Fellowes crescer: como em Assassinato em Gosford Park, o filme que ele escreveu para o diretor Robert Altman, Downton Abbey conjuga o mundo de “escada acima”, onde viviam os patrões, com o mundo de “escada abaixo”, o dos empregados. “Escada acima” e “escada abaixo” não é figura de linguagem: nas casas abastadas, a própria arquitetura era metáfora do arranjo social – além de ser o nome de uma série exibida entre 1971 e 1975 que se tornaria o modelo para quase toda a ficção vindoura sobre o tema. A veterana Upstairs Downstairs, é verdade, tratava do assunto com dentes mais afiados, ao passo que Downton Abbey recria de forma quase idílica um tempo em que esses estratos eram complementares e mutuamente dependentes. Mas não raro, em ambas, os empregados circunspectamente convocam os patrões a ater-se aos seus papéis sempre que eles ameaçam desviar-se deles: a certeza sobre qual o lugar correto de cada indivíduo nesse microcosmo era um fator essencial à estabilidade das relações. Uma das grandes fontes de tensão da trama, portanto, está no fato de que, embora os personagens não se deem conta disso, esse mundo está já entrando em colapso. Mas só na história real. Na ficção, Fellowes provou, o fascínio que ele exerce garante que há de continuar vivo.
Isabela Boscov
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Publicado originalmente na revista VEJA no dia 16/05/2015
Republicado sob autorização de Abril Comunicações S.A
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