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Covid-19 chega à cidade mais indígena do país: “corrida contra o tempo”

O município de São Gabriel da Cachoeira, no Amazonas, registrou quatro casos de contaminação por coronavírus

Por Jennifer Ann Thomas Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO Atualizado em 27 abr 2020, 19h34 - Publicado em 27 abr 2020, 19h25
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  • No extremo noroeste do Brasil, na fronteira com a Colômbia e a Venezuela, o município de São Gabriel da Cachoeira, no Amazonas, região conhecida como Cabeça do Cachorro, abriga a maior população indígena do país. Com 45.000 habitantes, sendo 90% indígenas, 23 povos se dividem entre 750 comunidades. Do total de moradores da cidade, cerca de 25.000 residem na área urbana. Além do português, há outras quatro línguas oficiais na região: Tukano, Baniwa, Yanomami e Nheengatu, também conhecida como a língua geral. Desde o primeiro caso confirmado da Covid-19 entre indígenas, registrado em 1º de abril, o temor era que a doença chegasse a São Gabriel. No último dia 26, a Secretaria de Saúde do município confirmou duas contaminações: um oficial militar e um professor da etnia Baniwa. Na atualização do dia seguinte, mais dois casos foram registrados, entre indígenas da etnia Baré. Do total, três estão em situação grave. 

    A 1.000 quilômetros de distância de Manaus, capital do estado, as únicas formas de acesso ao município são por barco ou avião. No dia 18 de março, um decreto proibiu a entrada e saída de pessoas: apenas o abastecimento de carga estava autorizado. Por transporte aéreo, são duas horas até a capital; de barco, três dias. De acordo com o presidente da Federação das Organizações Indígenas do Rio Negro (Foirn), Marivelton Baré, a maior preocupação é que o número de mortes seja muito alto. “A situação nos faz lembrar da época do sarampo, que matou muita gente na floresta. Nossos antepassados sofreram com pragas e doenças. O medo é grande”, afirmou.

    Segundo um estudo feito por um grupo de antropólogos e geógrafos liderados por Marta Azevedo, da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e ex-presidente da Funai, 81.000 indígenas estão em vulnerabilidade crítica à Covid-19. A análise identificou que a região do Alto Rio Negro, que abrange São Gabriel, está entre as mais ameaçadas: são 19.099 pessoas em risco.

    De acordo com a assessora do Programa Rio Negro do Instituto Socioambiental (ISA), Juliana Radler, o clima é de “corrida contra o tempo”. Segundo Juliana, a região não tem infraestrutura para enfrentar uma escalada rápida de casos. “Precisamos de agilidade para buscar algum meio, algum recurso, alguma estrutura, para conter e epidemia e cuidar das pessoas que ficarem doentes. O principal é evitar que São Gabriel se torne uma Manaus ou uma Guaiaquil [capital do Equador]. Estamos acompanhando com muita preocupação”, afirmou. Para alinhar os esforços, foi formado um Comitê de Prevenção e Enfrentamento ao Novo coronavírus, com representantes de instituições como Funai, ISA, Exército, Foirn e todas as secretarias municipais. 

    No Amazonas, Manaus é a única cidade com leitos de UTI. Em São Gabriel da Cachoeira, o atendimento de saúde é feito no Hospital de Guarnição (HGU), administrado pelo Exército. O município tem sete respiradores — cinco são usados por pessoas com outras doenças respiratórias. Mesmo com a determinação para evitar a circulação de pessoas entre municípios, algumas chegaram à cidade de forma clandestina nas embarcações usadas para o transporte de cargas. Outros moradores usaram voadeiras, um tipo de barco, para ir a municípios vizinhos no Rio Negro. Ao analisar o histórico das duas pessoas contaminadas, constatou-se que eles não haviam saído de São Gabriel recentemente. Portanto, foram contaminados na cidade.

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    No dia 11 de abril, o governo federal prometeu a construção de um hospital de campanha específico para atender a população indígena, com 200 leitos, e que ainda não foi entregue. “O caso do professor, por exemplo, foi mais grave. Ele precisou ser entubado. Porém, a alternativa a São Gabriel é uma transferência para Manaus, onde o sistema de saúde já entrou em colapso”, afirmou Juliana. Além de todas as dificuldades logísticas, há povos indígenas considerados de contato recente, que viviam isolados até pouco tempo atrás: os Hupdah, Dâw, Yuhupdeh e Nadöb. Eles são considerandos ainda mais vulneráveis, pois não tiveram contato nem mesmo com outras doenças mais comuns de áreas urbanas.

    Próximos a São Gabriel, os municípios de Barcelos e Santa Isabel do Oeste, ambos no Rio Negro, também registraram casos de coronavírus. Para os moradores das três cidades receberem o benefício social concedido pelo governo federal, há apenas uma lotérica da Caixa Econômica em São Gabriel — o que gerou uma aglomeração de pessoas no local. “Os auxílios do governo não são pensados para a Amazônia e os povos indígenas. É surreal a situação à qual estamos submetidos. Os povos indígenas não têm representatividade em qualquer governo, menos ainda no atual”, declarou Barroso. 

    Para enfrentar a pandemia, as instituições locais apostam na comunicação para manter os moradores das comunidades longe da cidade e preservar o isolamento social entre quem mora na área urbana. O ISA desenvolveu cartilhas em português e nas línguas indígenas Baniwa, Dâw, Nheengatu e Tukano. “A principal forma de comunicação é por WhatsApp. Infelizmente, além do vírus, também temos que combater as fake news”, explicou Juliana. O trabalho tem o objetivo de traduzir a crise de saúde, explicar o que está acontecendo e como a doença afeta o organismo. Ao mesmo tempo, a linguagem foi pensada para evitar que se crie um clima de pavor e de pânico. “As gerações mais antigas têm memórias de epidemias de gripe, sarampo, rubéola… São lembranças dolorosas”, afirmou Juliana.

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