Covid-19 chega à cidade mais indígena do país: “corrida contra o tempo”
O município de São Gabriel da Cachoeira, no Amazonas, registrou quatro casos de contaminação por coronavírus
No extremo noroeste do Brasil, na fronteira com a Colômbia e a Venezuela, o município de São Gabriel da Cachoeira, no Amazonas, região conhecida como Cabeça do Cachorro, abriga a maior população indígena do país. Com 45.000 habitantes, sendo 90% indígenas, 23 povos se dividem entre 750 comunidades. Do total de moradores da cidade, cerca de 25.000 residem na área urbana. Além do português, há outras quatro línguas oficiais na região: Tukano, Baniwa, Yanomami e Nheengatu, também conhecida como a língua geral. Desde o primeiro caso confirmado da Covid-19 entre indígenas, registrado em 1º de abril, o temor era que a doença chegasse a São Gabriel. No último dia 26, a Secretaria de Saúde do município confirmou duas contaminações: um oficial militar e um professor da etnia Baniwa. Na atualização do dia seguinte, mais dois casos foram registrados, entre indígenas da etnia Baré. Do total, três estão em situação grave.
A 1.000 quilômetros de distância de Manaus, capital do estado, as únicas formas de acesso ao município são por barco ou avião. No dia 18 de março, um decreto proibiu a entrada e saída de pessoas: apenas o abastecimento de carga estava autorizado. Por transporte aéreo, são duas horas até a capital; de barco, três dias. De acordo com o presidente da Federação das Organizações Indígenas do Rio Negro (Foirn), Marivelton Baré, a maior preocupação é que o número de mortes seja muito alto. “A situação nos faz lembrar da época do sarampo, que matou muita gente na floresta. Nossos antepassados sofreram com pragas e doenças. O medo é grande”, afirmou.
Segundo um estudo feito por um grupo de antropólogos e geógrafos liderados por Marta Azevedo, da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e ex-presidente da Funai, 81.000 indígenas estão em vulnerabilidade crítica à Covid-19. A análise identificou que a região do Alto Rio Negro, que abrange São Gabriel, está entre as mais ameaçadas: são 19.099 pessoas em risco.
De acordo com a assessora do Programa Rio Negro do Instituto Socioambiental (ISA), Juliana Radler, o clima é de “corrida contra o tempo”. Segundo Juliana, a região não tem infraestrutura para enfrentar uma escalada rápida de casos. “Precisamos de agilidade para buscar algum meio, algum recurso, alguma estrutura, para conter e epidemia e cuidar das pessoas que ficarem doentes. O principal é evitar que São Gabriel se torne uma Manaus ou uma Guaiaquil [capital do Equador]. Estamos acompanhando com muita preocupação”, afirmou. Para alinhar os esforços, foi formado um Comitê de Prevenção e Enfrentamento ao Novo coronavírus, com representantes de instituições como Funai, ISA, Exército, Foirn e todas as secretarias municipais.
No Amazonas, Manaus é a única cidade com leitos de UTI. Em São Gabriel da Cachoeira, o atendimento de saúde é feito no Hospital de Guarnição (HGU), administrado pelo Exército. O município tem sete respiradores — cinco são usados por pessoas com outras doenças respiratórias. Mesmo com a determinação para evitar a circulação de pessoas entre municípios, algumas chegaram à cidade de forma clandestina nas embarcações usadas para o transporte de cargas. Outros moradores usaram voadeiras, um tipo de barco, para ir a municípios vizinhos no Rio Negro. Ao analisar o histórico das duas pessoas contaminadas, constatou-se que eles não haviam saído de São Gabriel recentemente. Portanto, foram contaminados na cidade.
No dia 11 de abril, o governo federal prometeu a construção de um hospital de campanha específico para atender a população indígena, com 200 leitos, e que ainda não foi entregue. “O caso do professor, por exemplo, foi mais grave. Ele precisou ser entubado. Porém, a alternativa a São Gabriel é uma transferência para Manaus, onde o sistema de saúde já entrou em colapso”, afirmou Juliana. Além de todas as dificuldades logísticas, há povos indígenas considerados de contato recente, que viviam isolados até pouco tempo atrás: os Hupdah, Dâw, Yuhupdeh e Nadöb. Eles são considerandos ainda mais vulneráveis, pois não tiveram contato nem mesmo com outras doenças mais comuns de áreas urbanas.
Próximos a São Gabriel, os municípios de Barcelos e Santa Isabel do Oeste, ambos no Rio Negro, também registraram casos de coronavírus. Para os moradores das três cidades receberem o benefício social concedido pelo governo federal, há apenas uma lotérica da Caixa Econômica em São Gabriel — o que gerou uma aglomeração de pessoas no local. “Os auxílios do governo não são pensados para a Amazônia e os povos indígenas. É surreal a situação à qual estamos submetidos. Os povos indígenas não têm representatividade em qualquer governo, menos ainda no atual”, declarou Barroso.
Para enfrentar a pandemia, as instituições locais apostam na comunicação para manter os moradores das comunidades longe da cidade e preservar o isolamento social entre quem mora na área urbana. O ISA desenvolveu cartilhas em português e nas línguas indígenas Baniwa, Dâw, Nheengatu e Tukano. “A principal forma de comunicação é por WhatsApp. Infelizmente, além do vírus, também temos que combater as fake news”, explicou Juliana. O trabalho tem o objetivo de traduzir a crise de saúde, explicar o que está acontecendo e como a doença afeta o organismo. Ao mesmo tempo, a linguagem foi pensada para evitar que se crie um clima de pavor e de pânico. “As gerações mais antigas têm memórias de epidemias de gripe, sarampo, rubéola… São lembranças dolorosas”, afirmou Juliana.