Há muito já se sabe que nem só de pão vive o homem. Mas o confinamento provocado pelo surto do novo coronavírus está deixando claro, para quem ainda tinha alguma dúvida, que o pão, por sua vez, não é alimento apenas para — vá lá — a carne. É verdade que o advento da quarentena tornou a ida até a padaria para comprar essa indispensável iguaria do café da manhã um ato que requer cuidados redobrados; às vezes até mesmo desaconselhável. No entanto, será que só isso sustentaria um fenômeno extraordinário que vem ocorrendo nestes tempos de pandemia, qual seja a explosão, em toda parte, de uma legião de, digamos desse modo, “novos padeiros” — um sem-número de pessoas que decidiram, literalmente, pôr a mão na massa para produzir o seu pão de cada dia?
Com apenas um dado é possível ter a dimensão exata do que está acontecendo: nos últimos meses, a busca na internet por alguma receita caseira de panificação cresceu inacreditáveis 300%. E muito do resultado disso se espalha, a toda hora, nas redes sociais e aplicativos, em fotos, lives e videochamadas deliciosas — sim, o interesse saltou do mundo virtual e ganhou forma, cheiro e sabor em incontáveis residências. Aguçou os paladares e saciou os apetites, claro, porém com um recheio a mais. Fazer pão se tornou uma atividade que tem ajudado muita gente a atravessar com mais leveza o período de isolamento entre quatro paredes, que não se sabe quando terminará. Uma distração prazerosa, um passatempo que ainda traz consigo a oportunidade de cultivar uma dieta saudável.
Praticante da arte da panificação, a gaúcha Aline Galle, que tem mais de 57 000 seguidores no seu Instagram, dedicado quase que totalmente ao assunto, viu a procura por seu curso on-line de pães de fermentação natural triplicar desde o início da epidemia. “Costumo dizer que o pão é um alimento para o corpo e para a alma”, diz ela. Formada em tecnologia da informação, Aline descobriu a fermentação natural — o levain — em 2017. Foi então que passou a se dedicar integralmente à panificação.
“Melhorei minha ansiedade. Entendi que é preciso esperar o tempo do pão, que não é o mesmo que o meu, para concluir um objetivo”, explica. Para ela, o mesmo vem acontecendo com quem está em quarentena. “Recebi relatos de pessoas que buscaram na panificação um alento para enfrentar uma depressão ou até mesmo o luto. Algumas delas encontraram no pão uma fonte de renda, depois de terem perdido o emprego. Muita gente se descobriu como padeiro nesta pandemia”, afirma Aline.
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Clique e AssineÉ o caso da fotógrafa mineira Nani Rodrigues, que teve trabalhos cancelados devido ao novo coronavírus. Por hobby, Nani já fazia pães em casa. Morando em São Paulo, ela viajou pouco antes da quarentena para Belo Horizonte com o seu levain e o deixou lá. Vieram o confinamento e a impossibilidade de buscá-lo. “Decidi fazer um novo e gravei o passo a passo. Ao postar nas redes, as pessoas começaram a agradecer por ter um refúgio no surto”, relata ela. Padeira de primeira fornada, a advogada Clara Coutinho, também mineira, se inspirou ao topar com as redes sociais dominadas pelos pães. “Foi a forma de lidar com a quarentena: criar algo do zero”, diz.
Precursor dos pães de fermentação natural no Brasil, o escritor e jornalista Luiz Américo Camargo, autor dos livros Pão Nosso e Direto ao Pão, acompanhou o novo interesse das pessoas pela produção artesanal da iguaria. “Essa redescoberta traz um lado ancestral comum a quase todas as culturas”, acredita. Para ele, isso se dá por um motivo simples: “O pão é essencial”. Tem sido assim na história: pesquisas recentes datam a origem de um tipo de pão há mais de 14 000 anos. É o alimento humano — em muitos sentidos.
Publicado em VEJA de 3 de junho de 2020, edição nº 2689