Em regra, menos de 10% dos alunos de nossas “escolas de elite”, campeãs do Enem, são negros. Foi o que mostrou a pesquisa conduzida pelo sociólogo Luiz Augusto Campos. O sistema é “segregado”, ele diz, com razão. Acrescentaria apenas um ponto: isso é apenas a ponta do iceberg. Nosso apartheid educacional é muito mais amplo. Alunos de menor renda, em sua maioria negros, se concentram nas redes estatais, situação que se inverte na educação privada. As raízes do problema são históricas, mas o sistema que o sustenta é fruto de um sistema que cultivamos todos os dias. Ele diz o seguinte: famílias com maior renda podem escolher. Escapam das redes estatais, vão para o setor privado, e os alunos alcançam 41% de proficiência em matemática (Ideb, 2019). Famílias de menor renda, a grande maioria, não têm alternativa. Estão atadas ao monopólio estatal, onde apenas 5% alcançam proficiência em matemática. Uma tragédia que gostamos de empurrar para baixo do tapete. Dizemos que a culpa é da pobreza, das famílias que não ajudam, dos próprios alunos, como se a condição econômica fosse um tipo de condenação. Discurso sem nenhuma base nos fatos. A experiência do ProUni vem mostrando que os alunos bolsistas integrais apresentam, em média, resultados sistematicamente melhores do que seus pares de maior renda, no Enade. É apenas um sinal. Todos podem aprender, garantindo-se condições adequadas. Exatamente o que nosso velho e burocrático modelo estatal de ensino não faz.
Além dos resultados pífios, há o abismo social e racial. No Brasil, nos habituamos a aceitar passivamente a existência desses dois mundos. Nos recusamos a colocar em prática qualquer política pública que abra oportunidades para que alunos de menor renda estudem em boas escolas privadas. Nos aferramos à ideia do monopólio estatal da educação pública, como uma espécie de religião, sempre imaginando que “em dez anos” tudo será diferente. Esquecemos, como observou o economista Paulo Tafner, que estamos estagnados no Pisa, em matemática, desde 2009. E mesmo se conseguíssemos melhorar, aqui e ali, isso não resolveria o problema da segregação social e racial.
Me intriga, nisso tudo, nosso gosto pela autocontradição. Por um lado, queremos superar o “racismo estrutural”; por outro, não nos importamos nem um pouco em alimentar continuamente o sistema dos “dois mundos”, na fase decisiva de formação das pessoas, na infância e na adolescência. Talvez aprendêssemos alguma coisa estudando as lições de um psicólogo social inovador, Gordon Allport, que em 1954 lançou um livro seminal, A Natureza do Preconceito. Sua tese era simples: o caminho mais curto para vencer a discriminação é o contato humano. No Exército americano, perguntaram aos soldados o que eles achariam se sua unidade “incluísse, lado a lado, soldados negros e brancos”. “De jeito nenhum” foi a resposta de 63% dos soldados de unidades segregadas; nas unidades em que já havia a diversidade, a recusa foi de apenas 7%. O mesmo princípio se aplicava a policiais, donas de casa, vizinhos e estudantes. Se crianças negras e brancas estudassem nas mesmas escolas, tenderiam a perder o preconceito. O trabalho de Allport foi seguido por um de seus discípulos, Thomas Pettigrew, que dedicou sua carreira a estudar a “teoria do contato”. Em 2006, ele lançou um trabalho de grande impacto, revisando 516 estudos empíricos sobre o tema, em 38 países, e suas conclusões foram inequívocas: em 94% dos casos, o contato entre as pessoas reduziu o preconceito. E não apenas no aspecto racial, mas “também para preconceitos quanto à orientação sexual, idade, doença mental e deficiência física”.
“O país é segregado por culpa exclusiva de nossas escolhas”
O que mais me impressiona é o fato de o país não fazer nenhum esforço, no ensino básico, nessa direção. Para nossa elite e seus incontáveis ideólogos, pode-se discutir infinitamente a “escola pública”, desde que não se toque no tabu: como cruzar a fronteira dos dois mundos, como fazer para que estudantes de menor renda possam compartilhar o mesmo universo educacional de seus pares de maior renda. Gostamos de falar em diversidade, mas entramos em pânico com a mera menção de alguma iniciativa pública que permita que isso aconteça.
É ao que estamos assistindo exatamente agora, com a parceria firmada entre a prefeitura e o Liceu Coração de Jesus, no centro de São Paulo. O Liceu é uma instituição de ensino centenária, que formou gerações de paulistanos, e hoje pode atender a crianças da rede municipal que jamais conseguiriam pagar a mensalidade de uma escola particular. Pois bem, bastou que a prefeitura gerasse essa possibilidade, a um custo similar ao investido na rede estatal, para que a gritaria começasse. A Constituição é clara, em seu Artigo 213, autorizando parcerias com escolas filantrópicas. Há demanda, a prefeitura tem o recurso, a infraestrutura e a expertise da instituição estão lá, mas não tem jeito. A lógica parece ser: esse modelo pode servir de exemplo para governos em todo o país, e é bom parar por aqui. E se os resultados aparecerem não em dez anos, mas já no ano que vem? E se aquela fronteira entre os dois mundos for cruzada, como é que fica? Estivéssemos de fato preocupados com inclusão, lembraríamos das lições de Allport e Pettigrew: faríamos não só com que pudessem estudar em uma boa escola, mas estudar lado a lado, alunos de menor e maior renda.
Quando me dizem que isso é impossível, lembro de algumas histórias. Uma é a do ProUni. O programa tem quase vinte anos, mais de 3 milhões de alunos puderam escolher onde estudar, e antes da sua criação também diziam que era impossível. Lembro dos hospitais, orquestras e centros tecnológicos geridos via organizações sociais ou PPPs, com casos de imenso sucesso; lembro das boas escolas do Senac e do Senai, de gestão privada com financiamento público. Lembro das incontáveis experiências no âmbito da OCDE, em que 58% do financiamento de escolas privadas tem fontes públicas, refletindo um sistema “misturado”, não segregado. Alternativas não faltam. A pergunta é: queremos de fato mudar, ou é apenas retórica? Com a mesma fórmula de sempre, chegaremos a resultados muito diferentes?
Por fim, me lembro de uma empreendedora do Espírito Santo, Bartira Almeida, que em 2008 criou o Instituto Ponte. Estruturou uma rede de parcerias com empresas e boas escolas, e oferece bolsas para que alunos de menor renda possam estudar lá. Os alunos são acompanhados, as famílias envolvidas, o desempenho excelente. Assistindo aos depoimentos daqueles jovens, que estudam economia ou medicina, sobre “voar longe”, “realizar os sonhos”, “mudar a minha vida e a do país”, confesso que alguma coisa mexeu aqui por dentro, e é por isso que ainda escrevo sobre esses temas. A verdade é que o Brasil tem jeito. Que o nosso setor público deveria aprender e dar escala a iniciativas como essa. E que o país é segregado, no fundo, por exclusiva culpa de nossas escolhas. Escolhas de quem detém o poder, na política, no mundo da opinião, e no fim do dia paga muito pouco da conta de nosso atraso, se é que o faz.
Fernando Schüler é cientista político e professor do Insper
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Publicado em VEJA de 22 de fevereiro de 2023, edição nº 2829