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Renunciar à guerra

De um país que prometia alguma convergência, à época da transição, produzimos um mundo político rasteiro e hiperpolarizado

Por Fernando Schüler Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO 16 jul 2022, 08h00

O episódio triste de Foz do Iguaçu é um sinal. Um entre muitos que temos recebido nos últimos tempos, e em geral não damos bola. Ninguém prestou muita atenção quando o vereador Quinzé, de Duque de Caxias, foi morto, no ano passado. Um dos tantos casos de violência “sem muita importância”, como me definiu um jornalista, que pululam Brasil afora. Até mesmo na tragédia somos seletivos. Bolsonaro repudiou a violência, não sem antes listar episódios de violência “do outro lado”, como a dizer que o problema não era com ele, mas com os seus inimigos. Estes, por sua vez, agiram da mesmíssima maneira, aproveitando o episódio para tirar uma casquinha política. Cada um fazendo a sua listinha de episódios de violência, por coincidência sempre do “lado de lá” do espectro político. Reação previsível. O país vive sua medíocre guerra política, e em meio à guerra não faz muito sentido apelos à paz e à tolerância. Me lembro de Albert Camus, quando lançou O Homem Revoltado, dizendo que toda violência devia ser abominada, inclusive a dos comunistas. Sartre chamou sua tese de “moral da cruz vermelha”. Era para ser um deboche, mas com o tempo virou elogio.

Bolsonaro adotou desde o início a retórica do confronto. Jamais pretendeu agir como “magistrado” ou coisa parecida. Seu foco sempre foi defender o “nosso povo” contra o comunismo e coisas do tipo. Há muitas interpretações sobre isso. Uma delas é a de que se trata efetivamente de uma estratégia. Manter o controle da pauta, a base de apoio mobilizada, a “campanha permanente”. Outra diz que ele não tinha alternativa. “A política é um dilema do prisioneiro”, me disse um membro do governo. “Se você cooperar e o outro trair, você está liquidado.” Não importa, pensei cá com meus botões. Quem chega à Presidência precisa tentar. Precisa deixar de ser o chefe de facção para liderar o país. Obama de certo modo fez isso com seu “não há estados azuis ou estados vermelhos”. Aquilo também soava meio ingênuo, mas no fim fez dele um estadista.

Em que pese Bolsonaro seja o principal responsável pelo nosso ambiente polarizado, mesmo porque está no comando do país, a atual oposição preparou muito bem o terreno. Lula apostou desde o início no “nunca antes neste país”. Na retórica do nós contra eles, ainda que feita com muito mais competência. Já havia uma longa tradição nessa direção. A tradição do “fora”. A lógica vem dos anos 80, ou antes, e se define por jamais conceder nada ao inimigo. Talvez isso viesse dos grupos militantes, dos anos 70 e da cultura hoje vazia da “luta de classes”. O fim do socialismo tornou tudo sem muito sentido, mas preservou sua estética. Um tipo reincidente e facilmente adaptável de dualismo. O “não ao colégio eleitoral”, o “fora Tancredo”, “fora Sarney”, “fora Collor”, “fora Itamar”, “fora FHC”, esse último com direito a uma demonização que só perde para nosso atual mandatário. Depois o “primeiramente, fora Temer”, que passou a abrir cada evento Brasil afora. Com Bolsonaro, tudo ganhou sofisticação. Acrescentou-se a “gramática do medo”, cujo raciocínio básico é: “diante do mal absoluto, nenhuma discussão política faz sentido”. E qualquer ponderação que escape da lógica do “horror”, uma imperdoável traição.

“Com Bolsonaro, tudo ganhou sofisticação com a gramática do medo”

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O fato é que conseguimos. De um país que prometia alguma convergência, à época da transição, produzimos um mundo político rasteiro e hiperpolarizado. Exatamente o ambiente político que tende a gerar episódios de violência. O professor James Piazza, da Penn State University, comparou dados de 156 países mostrando o seguinte: países em que a liderança política raramente faz uso do discurso de ódio têm, em média, nove vezes menos episódios de violência política do que países em que isso é corriqueiro. Não significa que sociedades pouco conflitivas estão imunes. Em julho de 2011, Anders Breivik matou 69 pessoas em um acampamento do Partido Trabalhista em Oslo. Foi um dos crimes políticos mais odiosos de nossa época, mas ninguém dirá que a Noruega seja um país especialmente violento. O ponto aqui é evitar a falácia anedótica. Extrair conclusões, em geral alinhadas à forma como vemos o mundo, a partir de um punhado de episódios selecionados a dedo. A pergunta relevante, nesse debate, é o que os dados nos dizem sobre a violência política no Brasil de hoje?

O Observatório da Violência Política e Eleitoral, da Unirio, identificou 214 casos no primeiro semestre deste ano. São 23% a mais do que no primeiro semestre de 2020. A maioria tem a ver com disputas locais. Os partidos mais atingidos foram o PSD, seguido pelo Republicanos, e logo depois o PL e o PT. Ao menos quarenta pessoas perderam a vida nessas escaramuças, mas aparentemente suas mortes não despertaram muita atenção. Talvez porque não se prestassem a uma boa retórica política. Vale aqui o argumento da “pirâmide do ódio”, desenvolvido pela Liga Antidifamação, a centenária organização judaica. Quanto maior o grau de toxina, radicalismo e preconceito no debate público, maior a probabilidade de violência na sociedade. Na base da pirâmide estão as atitudes mentais. O “medo da diferença”, o uso frequente de estereótipos. Na ponta de cima, a violência. As rixas locais, o vereador expulso da universidade, a pontapés, o sujeito atirando contra o vizinho em uma tarde triste de domingo.

A verdade é que não temos nenhuma receita pronta para reduzir a violência política, e nem parece haver muita gente realmente preocupada com isso. Se alguém quiser ajudar, o melhor a fazer é uma mudança de atitude, com o risco de que tudo não passe de uma pregação no deserto. Em uma expressão: renunciar à lógica da política como guerra. Não é lá muito sexy, nem rende uma montanha de likes em uma rede social. Mas parece ser o único caminho. Evitar a hiperpolitização da vida e aceitar que os outros, sejam de esquerda, sejam de direita, não são a “morte”, como escutei por estes dias, mas têm a mesma legitimidade. E que no fundo a política é muito menos importante do que em geral imaginamos. Em última instância, um debate sobre políticas públicas, um tema frequentemente sem graça, sobre o qual cada um pode estar inteiramente errado no que pensa.

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Na época recente, vi isso acontecer na campanha presidencial americana de 2008. John McCain, o candidato republicano, estava em um comício quando uma mulher fez algum tipo de acusação moral a Obama, seu adversário, do Partido Democrata. Ele sacou-lhe o microfone e disse: “Não, não, Obama é um cidadão decente, nós temos visões diferentes sobre temas fundamentais, e é apenas isso que está em jogo nestas eleições”. Lula e Bolsonaro poderiam dizer algo nessa linha? Eles o fariam? Cada um pode responder. Se pudessem, dariam uma grande contribuição a nossa democracia. Mas não creio, infelizmente, que isso aconteça.

Fernando Schüler é cientista político e professor do Insper

Os textos dos colunistas não refletem, necessariamente, a opinião de VEJA

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Publicado em VEJA de 20 de julho de 2022, edição nº 2798

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