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O refúgio de Montaigne

Deveríamos reencontrar a serenidade e a leveza que perdemos

Por Fernando Schüler Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO 5 nov 2022, 08h00

“Acabou”, teria dito Bolsonaro em sua reunião com os ministros do STF, depois daquele discurso meio torto, mas que significava, na prática, o reconhecimento da derrota. Ainda bem, pensei. A vida de uma grande democracia é assim. Há eleições, quem ganha faz festa, faz troça, e quem perde fica de cabeça quente, mas lá pelas tantas “sacode a poeira, aprende com os próprios erros e volta à arena ainda com mais força”, como disse o insuperável Barack Obama, depois de uma grande derrota. No caso brasileiro, digo que faltou foi grandeza. Aos líderes, em primeiríssimo lugar, e em escalas muito diferentes. Em vez de aproveitar o seu discurso para “unir o país”, como havia prometido, o futuro presidente foi à Paulista dizer que havia derrotado o “fascismo”, retomando a velha e conhecida lógica da “herança maldita” e do “nunca antes neste país”, que lá atrás contaminou o Brasil. Pior ainda fez o atual presidente. Em vez de fazer a única coisa que lhe cabia, reconhecer a derrota e preparar uma boa transição, se calou. E pior: assistiu passivamente a seus apoiadores bloqueando rodovias e pedindo intervenção militar à porta dos quartéis. Cumprindo à risca o roteiro patético que seus inimigos desejavam que eles cumprissem, e cometendo o pecado que durante quatro anos escutamos que não deveria ser cometido: desrespeitar a liberdade das pessoas e seu direito de ir e vir.

O mais chocante foi a perda de controle. Um quê de alucinação coletiva que em certos momentos parecia ter tomado conta das eleições. O meio da tarde de domingo talvez tenha sido seu pico, quando chegavam informações de que “militares haviam ocupado a Ponte Rio-Niterói” e que havia barreiras por toda parte, operadas pela Polícia Rodoviária Federal, impedindo os eleitores de votar. Um respeitado analista me escreveu dizendo que o “eleitores da oposição estão sendo barrados”, e que “estávamos na Venezuela”, com direito a vários pontos de exclamação. A presidente do PT pediu que seus deputados fossem até as supostas barreiras e prendessem policiais e influencers digitais paranoicos gritavam que estávamos diante de um “golpe”. Como de hábito, tudo terminou horas depois com uma calma entrevista do ministro Alexandre de Moraes dizendo que tudo não passava de conversa-fiada e que nenhum eleitor havia sido impedido de votar. Vi naquilo tudo um flash do que seria um “inferno madisoniano” na era digital. O termo vem das desconfianças de Madison com a democracia das multidões, sujeita à turbulência das “paixões incontroláveis”. A crendice, a mistura de fatos e realidade, a disposição para o ódio, ao avesso da cooperação. Madison falava em “facções”. Hoje falamos em tribos digitais. Dá na mesma. A bruxa está solta, com sua gritaria e irresponsabilidade, e ninguém sabe bem como resolver o problema.

A política brasileira está doente. E não há muito que cada um de nós possa fazer. O que está sob nosso controle, ainda que por vezes esqueçamos, é como cada um vai se comportar. Há um percurso individual a ser trilhado em meio à tormenta, e é isso que no fundo importa. Foi pensando nessas coisas que abri minha velha edição dos Ensaios, do filósofo francês Montaigne, intuindo que sua releitura poderia nos ajudar de alguma maneira. Montaigne viveu um tempo bem mais complicado que o nosso. Passou por oito guerras civis, pela Noite de São Bartolomeu, pela peste e pela guerra sem fim entre católicos e protestantes franceses. Envolveu-se até o pescoço com as querelas de Bordeaux, e em um certo momento, no dia exato em que completou seus 38 anos, resolveu ir embora. Anunciou que estava abandonando suas funções e se retirou para o seu castelo. Mais especificamente, para a sua torre-biblioteca. No alto de uma parede mandou escrever: “Michel de Montaigne, já cansado das funções na Corte e honrarias públicas, retirou-se completamente para conversar com as virgens instruídas”.

“Deveríamos reencontrar a serenidade e a leveza que perdemos”

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A partir dali, Montaigne passa a ensaiar. “Me retirei”, escreveu ele, “resolvido a não me preocupar com nada.” Não foi bem assim. Em meio a sua biblioteca de 1 000 volumes, deixou que a imaginação o levasse. Um livro, em especial, mexeu com sua cabeça: Hipotiposes Pirrônicas, do mestre do ceticismo grego, Sexto Empírico. Montaigne então dá o seu primeiro passo: a aceitação da dúvida. O que fazer diante de um mundo dogmático? Que critério usar em uma controvérsia religiosa, ou política, quando há completa certeza em ambos os lados? Montaigne é irônico. Mais de 280 seitas teriam nascido da pergunta sobre o sentido da vida. “Uns acham que nosso bem supremo está na virtude; outros na volúpia; e ainda outros na ausência de sofrimento.” Ele diz ser perfeitamente claro que os homens “não estão de acordo com nada, nem mesmo em que o céu se encontra acima de nossa cabeça”. É preciso preservar certa distância. Recusar a paixão, essa “péssima guia”, e voltar a prestar atenção às coisas simples. Ele busca a imagem de Pirro, o primeiro dos céticos, que em meio a uma tempestade, no mar, pede que os homens observem um porco, a bordo, que permanece perfeitamente calmo. Montaigne então sugere que era a ignorância que levava à tranquilidade, ao passo que o excesso de conhecimento, tornado certeza, perturbava o espírito e levava à infelicidade.

Daí seu retiro. Sua decisão de viajar, abrir-se à curiosidade e registrar tudo em seus Ensaios. Testemunho de alguém que recusou a loucura de sua época e se dedicou à busca de si mesmo. Nas mais de 1 000 páginas de seu livro, há de tudo, mas sempre me chamou atenção seu elogio da amizade como algo superior à crença e à política, ou ainda: uma barreira a seu despotismo. Foi assim que Montaigne sempre entendeu sua relação com La Boétie, que ele descreve como a “mais perfeita” amizade de seu tempo. Aquela que se fazia do “aprendizado pelo desacordo”, e logo tem na tolerância a sua condição. Quando vejo hoje velhos amigos transformados em estranhos, quando não inimigos, em razão da pequena raiva política, me dou conta de como andamos para trás. De como andamos com dificuldade para entender o que é importante nessa vida rápida e o que é apenas passageiro.

Muita gente saiu machucada dessas eleições. O país saiu arranhado, o ano vai terminando e intuo que o retiro de Montaigne pode nos instruir de alguma maneira. Ninguém precisa de uma torre, ou de um castelo, nem escrever um livro de 1 000 páginas. Basta um punhado de atitudes. Rever os amigos, esquecer certas coisas que dissemos e que agora fazem bem menos sentido. Largar um pouco os grupos contaminados no Whats­App, retomar alguma moderação, e procurar coisas diferentes para fazer. Há quem veja Montaigne como o primeiro indivíduo moderno que se pôs a nu. Alguém que gostava de dizer: devemos apenas “nos emprestar aos outros, mas nos dar apenas a nós mesmos”. Um dia fui lá, visitar sua torre. Era um fim de tarde belíssimo, não havia ninguém ali, e em meio àquele silêncio entendi perfeitamente o sentido do seu gesto, no qual muita gente anda precisando se inspirar. Ele pode nos custar algum desprendimento, mas pode devolver em dobro a serenidade e a leveza que eventualmente perdemos e que, não tenho dúvidas, deveríamos reencontrar.

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Fernando Schüler é cientista político e professor do Insper

Os textos dos colunistas não refletem, necessariamente, a opinião de VEJA

Publicado em VEJA de 9 de novembro de 2022, edição nº 2814

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