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O fim do fim da história

A ideia liberal, diante da brutalidade e do horror, renasce com sua imensa força

Por Fernando Schüler Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO 12 mar 2022, 08h00

“O liberalismo se tornou obsoleto”, disse Putin, tempos atrás. Seu iliberalismo mistura aspectos culturais — a aversão à “diversidade sexual” e ao multiculturalismo — com a negação de traços essenciais das democracias constitucionais. A Rússia foi, desde a transição dos anos 90, “uma democracia ornamental com alma autoritária”, como li de um professor russo. Uma “democracia soberana”, como o próprio Putin gostava de chamar seu regime. Sistema mais propenso a “proteger a maioria do que o direito de minorias”. Putin expressa, por essas ironias da história, o exato oposto do que representou Gorbachev, o arquiteto da grande transição da qual ele mesmo foi o herdeiro. Um líder com a cabeça no século XX, obcecado com os avanços da OTAN e disposto a retomar ao menos uma parte do antigo império soviético.

O primeiro resultado da agressão russa é o medo. Yuval Harari sugere que um eventual sucesso russo na Ucrânia promova uma corrida armamentista global. Mas há um significado mais amplo nisso tudo? Há quem fale no mais duro baque à ordem liberal, e aos próprios fundamentos da democracia liberal, desde o fim da União Soviética. Não acho que exista uma resposta clara. A história está em curso. Putin perdeu a “guerra de opinião”, mas não parece que seja esta a sua maior preocupação.

A crise do liberalismo foi periodicamente anunciada, nas duas últimas décadas. Depois da euforia da virada para os 90, com a queda do muro, com Havel e sua revolução de veludo, o primeiro grande anúncio do fim do mundo liberal foi com o 11 de Setembro. “O mais profundo desafio desde a origem do liberalismo: de uma teologia illiberal revelada”, como disse Judd Owen, à época. Depois tivemos o surgimento da “nova direita” americana, com o governo Bush e o Tea Party. Depois, a grande crise de 2008 e logo o diagnóstico recorrente de que nossas democracias deslizavam ladeira abaixo. Quando Trump chegou ao poder, tudo parecia desmoronar. É certo que tudo isso soa como enorme exagero. A leitura da história exige distanciamento. Mesmo os indicadores sobre a democracia, aparentemente técnicos, são forrados de informações duvidosas e predileções políticas. É preciso cuidado. É possível que vivamos até hoje à sombra da euforia e das expectativas exageradas sobre a nova ordem liberal e democrática, anunciada no pós-queda do Muro de Berlim. À sombra daquela tese fulminante de Fukuyama, de que assistíamos a uma vitória definitiva da democracia liberal e da economia de mercado, no que seria o “fim da história”.

Talvez tenhamos esquecido que a instabilidade pertence à própria natureza das democracias liberais, e que a história contém um elemento de imprevisibilidade. Em nosso tempo, diria que o fato imprevisto não se refere a nenhuma guerra, mas à revolução tecnológica. A “destruição criativa”, pela qual vem passando a democracia, na qual antigas instituições — partidos, sindicatos, mídia convencional — são eclipsadas por formas novas e algo caóticas de representação.

Fukuyama publicou um longo artigo, dias atrás, argumentando que nossa crise diz respeito à própria vitalidade da “ideia liberal”. Esquerda e direita teriam culpa no cartório. De um lado, a cultura “woke”, seu senso de superioridade moral, sua aversão ao contraditório. De outro, a ideia do liberalismo como inimigo dos valores tradicionais. Putin é a caricatura disso, quando diz “que todos sejam felizes (referindo-se ao direito dos gays), mas que isso não ofusque os valores familiares tradicionais de milhões de pessoas que formam a maioria”.

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“A ideia liberal, diante da brutalidade e do horror, renasce com sua imensa força”

A tese de Fukuyama: o inimigo da ideia liberal está dentro de casa. Reside em seu ingrediente “antinatural”. A ideia difícil segundo a qual devemos “deliberadamente limitar o alcance da política e celebrar a tolerância das diferentes e opostas visões de mundo”. Essas coisas que fazem todo o sentido quando estamos abaixo da repressão, ou desafiados por um sistema hostil, como na Guerra Fria, mas que logo esquecemos, quando tudo parece estar sob controle e a liberdade parece assegurada. Nos esquecemos de quanto a defesa de certos princípios era importante, logo ali atrás. Afora isso, há o inimigo externo. Larry Diamond observa que a Rússia tem 6 000 ogivas nucleares, mas é a China que representa o maior risco à democracia liberal. Putin é um líder arcaico, mas carece de um “modelo”. Em contrapartida, há um “modelo chinês” a ser exportado. Fundado na retórica de que a China pratica um tipo “diferente de democracia”, um tipo autoritário de capitalismo de Estado capaz de produzir crescimento acelerado, dispensando os “cansativos padrões ocidentais de freios e contrapesos, e sua retórica moral em torno de direitos e liberdades”.

Há um pano de fundo desse argumento: nos convencer de que a democracia é um valor “relativo”. Que há muitas “formas” de praticar a liberdade. Que é possível imaginar uma democracia sem direitos individuais, sem liberdade de expressão, competição eleitoral, poderes independentes. Toda essa parafernália da tradição liberal que o ocidente desenhou, a duras penas. Talvez seja precisamente a essa “parafernália” que precisamos voltar a prestar atenção. E talvez seja essa a grande lição que as ruas destruídas de Kharkiv e Kiev e as imensas filas de refugiados nos contam. Nos ensinam também que o “fim da história” talvez tenha sido um bom insight intelectual com enorme risco histórico: nos fazer acreditar em um mundo destinado à paz e à democracia. “Vivemos tanto tempo dentro da bolha da ordem liberal”, escreveu Robert Kagan, “que perdemos a capacidade de imaginar outro tipo de mundo. Achamos que ele é natural e mesmo inevitável”. Kagan anotou isso há pouco mais de três anos. Putin, por estes dias, nos trouxe com perfeita clareza o sentido de suas palavras.

Desde este país periférico, o Brasil, o pecado que não deveríamos ter cometido é relativizar a agressão. Por muito que nos interessem os fertilizantes russos, cabia uma posição firme relativa a princípios. A verdade triste é que também por aqui vamos sendo seduzidos pelo iliberalismo. Aceitamos relativizar uma agressão explícita, como contra a Ucrânia, como relativizamos ditaduras, à esquerda e à direita, e agora resolvemos relativizar o direito à liberdade de expressão. De ambiguidade em ambiguidade, vamos cedendo o terreno em princípios dos quais não deveríamos abrir mão.

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Há lições a aprender disso tudo. Fukuyama diz que talvez estejamos vivendo o “fim do fim da história”. Que há sombras no horizonte. Mas que a bravura dos cidadãos, na Ucrânia, e a solidariedade que despertam, mostra que o “espírito de 1989 permanece vivo”. Que a ideia liberal, diante da brutalidade e do horror, renasce uma vez mais, com sua imensa força.

Fernando Schüler é cientista político e professor do Insper

Os textos dos colunistas não refletem, necessariamente, a opinião de VEJA

Publicado em VEJA de 16 de março de 2022, edição nº 2780

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