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Lições na Suprema Corte

A melhor aposta: instituições que não reinventem a Constituição a cada confusão

Por Fernando Schüler Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO 9 mar 2024, 08h00

“São cidadãos comuns, sem foro privilegiado”, disse o ministro aposentado do STF Marco Aurélio Mello, referindo-se aos invasores do 8 de Janeiro, em uma entrevista. E concluiu: “Por isso seus processos deveriam estar com o juiz natural da causa, na primeira instância”. Marco Aurélio não é tipo que se incomode em sustentar uma posição minoritária. Ele argumenta, gentil, sustentando sua visão em nome das “potencialidades do direito”, com a qual se pode concordar ou discordar. O STF, para o ministro, não deveria estar julgando Bolsonaro, dado que ele é um ex-­presidente e, portanto, também deveria ir para a Justiça comum. E por aí seguiu. Disse que os “patriotas” não deveriam ter sido autorizados a acampar nas áreas privativas do Exército, que as forças de segurança falharam e que aquilo estava mais para “baderna” do que para uma tentativa real de “golpe de Estado”.

Foi o que bastou. Imediatamente, a militância enquadrou o ministro como “bolsonarista”. De um jurista mais exaltado escutei que ele havia “abraçado o autoritarismo”, e por aí correram os xingamentos. A lógica é simples: o ministro não poderia estar propondo uma sutileza. Qual seja: a ideia de poder defender um tipo de processo, pautado pelas regras do direito, independentemente do “lado político” que está em jogo. Ou, quem sabe, a intuição de que não existe melhor maneira de defender a democracia do que fazer isso respeitando as próprias regras da democracia, inscritas na Constituição. Tudo isso são sutilezas, e militantes têm horror a sutilezas. Seu problema, como num auto de fé, é saber “de que lado aquele sujeito está”. E por aí se define basicamente qualquer coisa. Há algum problema nesse comportamento? Ele dificulta consensos? Torna insuportável o debate público? Funciona como um bom negócio, em nossas democracias digitais?

Quem trata disso com rara beleza é a cientista política Anne Applebaum, em O Crepúsculo da Democracia. O livro funciona como uma crônica do declínio. De como fomos perdendo a capacidade de diálogo que ainda existia em nossas democracias, não muito tempo atrás. Applebaum fala da proeminência das “mentes autoritárias”, conceito que busca nos estudos da pesquisadora Karen Stenner. Pessoas que se definem basicamente pela aversão à complexidade. Movem-se por “unidade e uniformidade”. Precisam de “lado”. Se são “contra o Bolsonaro”, isso orienta toda a sua visão política. Se são “contra o Lula”, idem. Se deixar, isso invade outros domínios da vida, das amizades às escolhas culturais. Elas podem ser de esquerda ou de direita, não importa. É o tipo que “bate sempre na mesma tecla”, que é incapaz de ponderar que há “aspectos positivos em diferentes espectros políticos” e cultiva uma genuína aversão à diversidade de ideias. Seu modo de lidar com os outros é a falácia ad hominem. O ataque ao interlocutor, não a suas ideias. O que pensa diferente padece de um defeito moral. Ponto. E, a partir daí, a necessidade do “enquadramento”. O “fascista”, o “comunista”, o “bolsonarista”. A insistência no “de que lado você está”. Exatamente como fizeram com o ministro Marco Aurélio.

Foi por aí a reação que se observou em relação à decisão da Suprema Corte americana, nesta semana, que na prática “autorizou” a candidatura de Donald Trump à Presidência. A controvérsia girava em torno da interpretação da 14ª Emenda à Constituição, que proíbe qualquer um que tenha se envolvido em atos de “insurreição”, depois de jurar a Constituição, de ocupar funções públicas. A decisão foi unânime. Juízes conservadores e liberais votaram na mesma direção. A Corte nem sequer entrou no debate sobre a responsabilidade ou não de Trump na invasão patética ao Capitólio. Se aquilo era uma “baderna” ou tentativa de tomada do poder. Os EUA estão divididos nesses temas, e não é matéria para a Suprema Corte. O ponto é: a decisão foi unânime porque está lá escrito, no texto da 14ª Emenda, que cabe apenas ao Congresso, e não aos estados ou à Suprema Corte, fazer valer os seus efeitos. Ou seja: o país pode estar politicamente rachado entre liberais e conservadores, mas há um mandamento constitucional acima de tudo. É a esse mandamento que aqueles juízes devem a sua fidelidade. É ele que permite, em última instância, que pessoas que pensam de maneira diferente possam estar de acordo em um aspecto essencial: sua confiança nas regras do jogo. Sem o que não faz muito sentido falar em uma democracia liberal.

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“A melhor aposta: instituições que não reinventem a Constituição a cada confusão”

Não deu outra. Aqui pelos trópicos, a turma resolveu dar lições à Suprema Corte. De uma jornalista, li que a Corte havia “falhado” em proteger a democracia americana. De outro, escutei que o Brasil estaria muito à frente dos EUA e que aqui, sim, sabemos como “proteger a democracia”. Achei engraçado. Talvez nossos militantes quisessem que a Suprema Corte americana não só atropelasse a Constituição, mandando banir Trump, mas também criasse algum “inquérito”. E a partir daí passasse a banir blogueiros, bloquear parlamentares e impedir que o Google e o Facebook apresentassem sua opinião sobre algum projeto em discussão no Congresso. Fazendo tudo isso, quem sabe os EUA se tornariam uma grande democracia, como a brasileira. Quem sabe.

Há dois aspectos interessantes aí. O primeiro é institucional. O fato de que a regra do jogo não deve variar segundo as preferências de quem ocupa, de maneira transitória, o poder. Juízes liberais devem apoiar posições que ao cabo favoreçam um candidato conservador, se é isso que a Constituição determina. E vice-­versa. O problema é que essa distinção entre a posição dos atores no jogo e a universalidade da regra é o que a democracia liberal tem de mais complexo. É o que faz as pessoas aceitarem uma derrota. Ou, ainda, saberem que não devem censurar um filme, por mais “suspeito” que lhes pareça. Que torna alguém capaz de reconhecer virtudes do outro lado e entender que, entre vitórias e derrotas, todos ganhamos com a preservação do jogo. Não vamos “corrigir” as pessoas. Ou reencontrar uma razoabilidade que nunca existiu nas democracias. Podemos apelar ao bom senso, alertar sobre o risco das “mentes autoritárias”, mas há um gigantesco ecossistema digital que pressiona na direção inversa. Os “homens não são anjos”, escreveu Madison, e é por isso que precisamos de boas instituições. Vai aí a melhor aposta. Instituições que prestigiem o direito “ordinário”, na expressão do ministro Marco Aurélio, e que não reinventem a Constituição a cada nova confusão política. Talvez seja essa a lição da Suprema Corte americana, à qual valeria prestar atenção.

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Fernando Schüler é cientista político e professor do Insper

Os textos dos colunistas não refletem, necessariamente, a opinião de VEJA

Publicado em VEJA de 8 de março de 2024, edição nº 2883

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