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Por Fernando Schüler
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Diversificar a diversidade

A lógica da guerra cultural parece supor que a inclusão de uns exija a derrota do lado de lá. Ou ao menos o silêncio

Por Fernando Schüler Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO 12 fev 2022, 08h00

Em 1988, Peggy McIntosh escreveu um libelo identitário, denominado “White Privilege and Male Privilege”, listando 46 situações nas quais ela usufruía algum privilégio, por ser branca e heterossexual. A lista incluía itens como “encontrar facilmente cursos acadêmicos que dão atenção apenas a pessoas da minha raça”, “não ter dificuldades em encontrar um bairro onde as pessoas aprovem nossa família” e poder “fazer caminhadas em espaços públicos”.

Os critérios de McIntosh foram se tornando, ao longo do tempo, um padrão recorrente em nossa cultura. Nos “comitês de diversidade”, nas empresas e universidades e na retórica pública. São critérios seletivos. Circunscrevem a diversidade aos aspectos de gênero, cor da pele e orientação sexual. Tempos atrás escutei uma referência curiosa às demais identidades, na forma de uma pergunta: “E o resto?”. “Que resto?”, retrucou o interlocutor, que parecia alinhado às categorias de McIntosh. A discussão terminou por ali.

McIntosh faz sua lista parecer “inclusiva”, mas é só ampliar um pouco nossa capacidade de enxergar as pessoas para perceber que ela também se define pelo esquecimento. Das pessoas com deficiências, por exemplo. São 14,5% da população; 69% das pessoas dizem já ter presenciado algum tipo de discriminação contra elas no trabalho. Ainda me lembro de um chefe ralhando com o responsável pelo RH: “Não me venha com esses PPDs, pelo amor de Deus”. A expressão era até pior, prefiro não reproduzir aqui.

E os mais velhos? Uma ampla pesquisa publicada na The Gerontologist mapeou os estereótipos a partir do Facebook: 74% dos grupos voltados aos mais velhos tripudiavam os idosos (“cheiram mal”, “atrapalham o trânsito”); 37% sugeriam que fossem excluídos de espaços públicos. Alguém já escutou coisas do tipo “aquele velho inútil”? Pois é, é preconceito. Ou o diretor da empresa dizendo precisar de “gente jovem, mais antenada”. Também é. O ponto é que ninguém dá bola. Nossos comitês estão preparados para reconhecer formas de machismo, mas não de “ageísmo”, na expressão cunhada pelo médico americano Robert Butler. Podemos fazer silêncio sobre muitas coisas, mas elas não desaparecem por causa disso.

Nos últimos tempos tenho lido sobre neurodiversidade. O Brasil tem perto de 2 milhões de pessoas no transtorno do espectro autista: 37%, mesmo formados, nunca conseguiram um emprego. Neurodiversidade é um termo cunhado pela socióloga Judy Singer, ela mesma com a síndrome de Asperger. Neurodivergentes não são doentes, ela diz, apenas distintos. São um tipo de identidade, e por isso ampliam o significado do que seja um mundo diverso. Não se iludam de que haverá um texto sobre seu privilégio de “não ser um neurodivergente”, como também de “não ser um deficiente auditivo”. E, se houver, desconfio que será recebido com alguma impaciência.

São apenas exemplos. As exclusões são múltiplas, mas a ferida aberta se mostra na invisibilidade. O lado escuro da lua da diversidade, em regra fora do discurso. Kwame Appiah associa as identidades humanas a seis grandes dimensões: gênero, religião, raça, nacionalidade, classe e cultura. Poderiam ser oito ou doze. É bastante arbitrário tudo isso. Pessoas não são como verduras na feira, que vêm em caixas separadas. As coisas são mais complicadas. Appiah tem raízes em Gana, foi criado na Inglaterra, leciona em Princeton e escreveu magnificamente sobre as mulheres chinesas que amarravam os pés. Sua obra talvez mais conhecida é uma apaixonada defesa do cosmopolitismo. Qual seria exatamente sua identidade? Perguntado sobre isso, acho que responderia como Salman Rushdie: “Por que precisamos nos definir como paquistanês, mulher ou afro-americano e agir como um porta-voz ambulante?”.

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“Pessoas não são como verduras na feira, que vêm em caixas separadas”

Em 2014, um estudante recém-che­gado em Princeton, Tal Fortgang, causou barulho ao publicar um texto, de fato um relato de vida, reagindo à febre dos câmpus universitários, exigindo que as pessoas checassem seus privilégios. Ele buscou a imagem de drones guiados por seus “superiores morais”, vigiando suas opiniões, sua identidade grupal, ligada a gênero e cor da pele, e pronto a ser julgado por um tribunal coletivo.

Seu texto é uma reação tardia à vitória intelectual da tese de McIntosh. Ele basicamente diz que tem uma história. Sua avó judia sobreviveu ao campo nazista de Bergen-Bel­sen e emigrou para os Estados Unidos, sem um tostão no bolso. Diz que sua história não é mais nem menos valiosa do que outras histórias e que vê sua identidade não tanto como um “ser”, mas como um “vir a ser”. Amálgama do que aprendeu em casa, do encontro com a América multifacetada e de suas próprias escolhas. Um tipo singular, que não tem do que se desculpar, que deve aos demais o mesmo respeito que exige para si mesmo.

É bom que a diversidade esteja no centro do debate. Sua explosão é resultado do thymos, o desejo de reconhecimento, como definiu Fukuyama, fio condutor das sociedades de direitos. Esse mesmo desejo põe agora um novo desafio: diversificar a própria diversidade. Não deixar que uma ideia-força vital como essa seja capturada pela lógica excludente da política, pelas escolhas seletivas, pela definição do que é visível ou não, valioso ou não, merecedor de respeito ou passível de toda sorte de ofensas, a partir do gosto ideológico, da capacidade de pressão ou de “colocar medo”, como li tempos atrás, desse ou daquele grupo. Seja ele qual for.

Confesso não ser muito otimista sobre nossa capacidade de diversificar a diversidade. A lógica da guerra cultural parece supor que a inclusão de uns exija a derrota do lado de lá. Ou ao menos o silêncio. Seu sentimento é o da tribo: “Nossas razões são sagradas, as de vocês, o erro”, como diz Jonathan Haidt. Tudo levado à enésima potência, no mundo digital, com sua baixa empatia, tão abundante de estereótipos quanto escasso de pessoas de carne e osso.

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Por isso de vez em quando abro meu Walt Whitman e seu Canto de Mim Mesmo. “De toda a cor e castas eu sou / de toda classe e religião.” / “Um fazendeiro, mecânico, artista, cavalheiro, marinheiro, quacre / Prisioneiro, gigolô, arruaceiro, advogado, médico, pastor”. No verso profético, tornado pop na música de Bob Dylan, Whitman dá a senha: “Eu me contradigo? / Tudo bem, então me contradigo, / (sou vasto, contenho multidões.).

Whitman captou algo essencial. Não somos perfeitamente enquadráveis. Nos cruzamos. Teimamos em escapar das identidades abstratas, ainda que de todo lado tentem nos agarrar. A multiplicidade humana é muito mais ampla do que parecemos dispostos a reconhecer, e boa parte dela reside dentro de nós. Por isso, somos multidões. Alguma humildade, nesse mundo complicado, quem sabe não nos faria mal.

Fernando Schüler é cientista político e professor do Insper

Os textos dos colunistas não refletem, necessariamente, a opinião de VEJA

Publicado em VEJA de 16 de fevereiro de 2022, edição nº 2776

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