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Crenças de luxo

Para quem já está com a vida ganha, o tema do mérito não faz diferença

Por Fernando Schüler Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO 23 mar 2024, 08h00

“Nosso pedido é simples: nos imponham impostos”, dizia o manifesto lançado por um grupo de milionários, o Proud To Pay More, ou “Orgulho em pagar mais”, no Fórum de Davos. Do grupo, fazem parte a herdeira da Disney, Abigail Disney, o ator Brian Cox e outros bacanas. “Só em Davos”, pensei, uma ideia como aquela, desejo de pagar mais impostos, faria sentido. O curioso foi ler a justificativa. A ideia de que dar mais dinheiro aos governos transformaria uma “riqueza privada extrema e improdutiva em investimento para o futuro democrático comum”. Como assim? Esse pessoal não investe o próprio dinheiro? Deixa embaixo de um colchão? Seus investimentos não geram empregos, novos negócios, novas tecnologias? Se o sujeito tem alguns milhões sobrando, por que não cria um fundo para investir em startups que podem descobrir a cura para o câncer? Ou quem sabe um fundo de endowment, com dinheiro aplicado no mercado, como fez, lá atrás, Andrew Carnegie, e financiar bolsas de estudos para quem não pode pagar a faculdade? Essa turma de fato acredita na sabedoria dos governos para “investir em nosso futuro”?

Ok, eles não são brasileiros. Não conhecem nossos políticos. Nosso modelo de distribuir dinheiro do contribuinte via emendas parlamentares, nossos 15 000 juízes ganhando acima do teto do setor público. Talvez o Brasil seja realmente uma exceção à regra, na política global. Quem sabe seja isso. Essa ideia de “pagar mais impostos”, sem pensar em reformas e como o dinheiro é gasto, no mundo político, é exemplo do que o psicólogo social Rob Henderson chama de luxury beliefs, ou crenças de luxo. Henderson é personagem improvável. Quando criança, morou no meio do lixo, em Los Angeles. Pulou de casa em casa, como filho adotivo, se meteu com drogas e por muito pouco não se perdeu. Um dia fez o alistamento militar e deu sua virada. Conquistou uma bolsa para Yale, depois para Cambridge. Hoje é respeitado, com textos no The New York Times. E com um detalhe: ao contrário de muitos de seus colegas intelectuais que dão receitas aos mais pobres, ele viveu, de fato, a vida dos miseráveis. Na linguagem da moda, adquiriu um “lugar de fala” para não engolir conversa fiada que soa bacana em um auditório na Suíça ou em Boston, mas que na prática inferniza ainda mais os que pretensamente deveriam ser ajudados.

Henderson diz que as crenças de luxo vão tomando o lugar dos bens de luxo, em nossa cultura. Por muito tempo, exibir uma bolsa Birkin, da Hermès, era uma boa estratégia de distinção. Hoje, funciona bem menos. Na cena pública, o que gera distinção é a adesão a um certo tipo de retórica. Dizer que “a família tradicional está superada”, como ele escutou de uma colega bacana, em Yale. Moça que havia sido criada em uma boa família tradicional e que pretendia, ela própria, criar a sua. Henderson sabia o quanto havia lhe custado ter pulado de galho em galho, em meio a famílias desestruturadas, na sua formação. Percebeu como era fácil dizer alguma coisa a custo zero, para si mesmo, ainda que complicada para um bocado de gente. Na prática, um tipo de irresponsabilidade intelectual. Algo que ganhou força com a revolução digital. Com este mundo em que todos estamos conectados, sob intensa vigilância, e onde tendemos a agir como “retóricos”. Como pequenos políticos, tentando agradar a alguma audiência, fazendo “sinalizações de virtude”. Por estes tempos me dei conta disso de um jeito um tanto cruel. Me deparava com um “eu amo o SUS”, seguido de um coraçãozinho, na rede social de um sujeito que frequentava o Hospital Albert Einstein, no terceiro espirro, enquanto um bom amigo de escola, sem grana ou plano de saúde, esperava exatos quatro meses e doze dias para iniciar seu tratamento no sistema público, depois do diagnóstico de um câncer pesado.

Uma das crenças de luxo preferidas de Henderson é o defund the police. A pregação feita pelos ativistas em regra mais ricos e instruídos sobre retirar recursos das polícias. “Pessoas vivendo em bairros seguros”, diz ele, “querem uma política cujo resultado é tornar ainda mais vulneráveis os que vivem em bairros de maior criminalidade”. No Brasil, meu exemplo favorito é a defesa que nossa elite faz do sistema estatal de educação, a “escola pública”. O modelo que defendemos, em que colocamos o tal coraçãozinho, mas no qual, por nada deste mundo, matricularíamos nossos próprios filhos. Henderson vê algo semelhante no discurso contra a meritocracia, uma “crença mais comum entre meus colegas em Yale do que entre as crianças com quem cresci”. A lição: para quem já está com a vida ganha, o tema do mérito não faz diferença. Para alguém que “vem de baixo”, como Henderson, é a única aposta. Ir atrás, buscar alternativas, como ele fez, com a carreira militar, depois com as bolsas, e por aí foi.

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“Para quem já está com a vida ganha, o tema do mérito não faz diferença”

Crenças de luxo não são de esquerda ou de direita. Tempos atrás, escutava de um simpático “libertário” a tese de que não deveria existir nenhuma política social, nem mesmo apoio público à educação. “O mercado resolve”, dizia ele. É um tipo de crença de luxo, sem audiência. A vantagem da esquerda vem de seu controle sobre o mundo da opinião. Em Harvard, talvez o maior “centro de distinção” intelectual do mundo, 75% dos professores são “progressistas”. Estudo feito em 48 grandes universidades anglo-saxônicas, que realmente podem irradiar prestígio intelectual a uma ideia, mostra o mesmo quadro. Não é difícil entender por que um empresário bacana pede para pagar mais impostos, mesmo sabendo o que os políticos fazem com o dinheiro. Ou que nossos parlamentares façam juras de amor ao SUS, sem dispensar o plano de saúde do Congresso. Ou ainda que uma intelectual diga, em um bom jornal, que o “capitalismo é incompatível com a democracia”, ela mesma vivendo, feliz da vida, em uma democracia capitalista, na Europa.

Não há nada ilógico nessa desconexão entre retórica e escolhas individuais. O mercado remunera bem as crenças de luxo, ainda que elas envolvam um claro nó ético. Foi este o tema do discurso de Max Weber sobre “A vocação da política”, há 100 anos, sugerindo a ideia de uma “ética da responsabilidade”. Uma ética daquele que não se deixa levar pela “excitação estéril”, que está aberto a mudar de ideia, que presta atenção às consequências que suas visões de mundo produzirão. E que está disposto a fazer isto mesmo ficando em minoria. Perdendo seu prestígio e, quem sabe, sendo desconvidado de algum jantar elegante, em Davos ou em São Paulo. Conheço gente assim. Talvez sejam eles que tenham descoberto um secreto sentido da ideia de luxo, que, não tenho dúvidas, deveríamos cultivar.

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Fernando Schüler é cientista político e professor do Insper

Os textos dos colunistas não refletem, necessariamente, a opinião de VEJA

Publicado em VEJA de 22 de março de 2024, edição nº 2885

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