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A volta da crimideia

Talvez sem desejar, o presidente do PCO testou os limites da nossa democracia

Por Fernando Schüler Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO Atualizado em 27 jun 2022, 11h19 - Publicado em 25 jun 2022, 08h00

Imagino que pouca gente conheça o Rui Costa Pimenta. Ele preside um pequeno partido comunista, o PCO, tem 27 000 seguidores no Twitter e fez 0,01% dos votos na última vez que concorreu. Mesmo assim foi considerado um grave perigo para a democracia brasileira. Foi coisa de três ou quatro tuítes. O partido acha que tem de fechar o atual STF. Quer juízes eleitos, um outro tipo de Estado, algo na linha de uma “ditadura do proletariado”. Não importa. Poderia pregar a volta da monarquia ou um regime ao estilo Luís XIV. É um direito democrático que as pessoas, incluindo-se aí os comunistas, possam dizer o que pensam. Sempre imaginei que era isso que dizia nossa Constituição. Não é o que pensam nossas autoridades. Foi aí que o PCO dançou. Teve as contas bloqueadas e foi banido das redes sociais. Já tinha acontecido com os “bolsonaristas”, agora é com os comunistas.

Não foi a primeira vez. Em 1947 o país tinha uma Constituição novinha em folha, respirava os ares democráticos do pós-guerra, e o PCB, o “Partidão”, ensaiava um crescimento. Foi banido pelo TSE. As razões incluíam o grave perigo que o partido representava para a democracia brasileira. Está lá escrito, na longa decisão de 211 páginas. O Partidão exercia “uma atividade colidente com os princípios democráticos definidos na Constituição”. Houve um processo, o PCB pôde se defender, e no final houve uma votação no tribunal. Na atual censura ao PCO não teve nada disso. Foi uma canetada democrática, um “manda tirar esses caras” que nos salvou da grave ameaça representada pelo PCO. Observando tudo isso, vêm à minha cabeça duas coisas: a primeira é agradecer ao Rui Costa Pimenta. Talvez sem desejar, ele testou os limites da nossa democracia. Testou se era verdade toda a conversa que escutei, desde os tempos da faculdade, sobre como este país era autoritário, nos anos 40, quando cassou o PCB. Sobre como mentimos para nós mesmos durante tanto tempo. A segunda é a lembrança daquela famosa frase de Marx, segundo a qual a história costuma se repetir. Primeiro como tragédia, depois como farsa.

Nossa atual Constituição vai fazer 34 anos, mas nossa cultura democrática parece andar sempre na primeira infância. Eu me dei conta disso por estes dias, quando lamentei, em um artigo, a volta da censura prévia. Recebi algumas mensagens surpresas com o que eu havia escrito. Uma delas dizia que “banir alguém das redes não significa impedir de falar”. Achei curioso. Pessoas banidas dos meios eletrônicos farão o quê? Vão cochichar umas com as outras? Quando o regime militar censurava as músicas de Chico Buarque não estava impedindo que ele cantasse para quem quisesse no seu apartamento. Estava impedindo que ele compartilhasse sua arte no espaço público, porque achava que a sua arte era “perigosa”. O espaço público hoje migrou para o mundo digital. Retirar das redes é basicamente banir alguém do debate público. Banir significa impedir “previamente” de falar. Alguma dúvida sobre isso?

Ouço dizer que a liberdade de expressão não inclui a “agressão”, a “mentira” ou “ataques” à democracia. Será? Há algo sobre isso na Constituição? Há ao menos um código ou uma lista especificando que tipo de agressão não pode ser feito, ou quem exatamente não pode ser agredido? Não se pode ofender um ministro, mas pode-se chamar um ex-presidente de “ladrão de nove dedos”? Ou de “nazista”, o atual? Essas perguntas são perfeitamente óbvias, assim como óbvia a sua resposta. Todos sabemos que estamos diante de uma situação absurda, mas fazemos de conta que está tudo bem.

“No Brasil de hoje, há muita gente que cuida o que vai dizer”

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Se aceitamos que a verdade é um bom critério para limitar a liberdade das pessoas, a quem exatamente vamos delegar a prerrogativa de dizer o que é a verdade? No Brasil de hoje, essa prerrogativa pertence a quem manda. A quem pode restringir liberdades. O que existe hoje em Brasília é um inquérito que já dura três anos, com objeto aberto e genérico, que distribui punições variadas segundo “interpretações” feitas a cada momento. Sejamos claros: o que temos, de fato, é uma política de Estado de controle de opinião, que não foi definida pelo Congresso, que o país não discutiu e sequer conhece seus critérios ou limites.

Leio agora que nossa Suprema Corte conta com um software para monitorar o que os brasileiros dizem na internet. Ele classifica o que se diz da Corte como “positivo, negativo ou neutro”, e pode gerar relatórios específicos das opiniões sobre cada juiz do STF. Foi exatamente o que a ministra Cármen Lúcia proibiu, corretamente, que o Executivo fizesse, dizendo que o “uso da máquina estatal” para colher informação específica sobre posturas políticas contrárias ao governo é uma “afronta ao direito fundamental de livre manifestação do pensamento”. A pergunta óbvia é: por que o mesmo critério não se aplicaria ao STF ou a qualquer outro órgão de Estado? O que o caso do PCO e tantos outros mostram é que, na prática, os cidadãos não apenas vêm sendo monitorados, mas também “especificamente” punidos por suas opiniões. Nossa República conta agora com um imenso panóptico, aquela torre gigante que tudo enxerga, sem nunca ser enxergada. Alguns dirão que é o panóptico democrático, sem medo da contradição. O panóptico do bem e que, até por isso, pode ser dispensado de certos ritos do estado de direito.

Em seu monumental O Espírito das Leis, Montesquieu nos lembrou que a liberdade política só existe quando os cidadãos podem gozar de “tranquilidade de espírito”. Essa é uma dádiva que só as Repúblicas podem oferecer, pois nelas o governo é feito de tal modo que “os indivíduos não precisam ter medo uns dos outros”. O oposto é o despotismo. Seu princípio é o medo. É preciso “que o temor acabe com todas as coragens”. É essa, em última instância, a fronteira que separa o governo das leis e o governo dos homens. Apenas a clareza sobre os direitos individuais torna possível viver com destemor. E apenas com destemor é possível viver em liberdade. No Brasil de hoje, talvez tenhamos cruzado uma fronteira. Há muita gente com medo. Muita gente que cuida o que vai dizer, pois “sabe-se lá o que pode acontecer”, como me confidenciou um jornalista algo cabisbaixo, por estes dias.

O fato triste é que voltamos a punir a crimideia no Brasil. O termo é do genial George Orwell, em seu 1984. Trata-se de um crime abstrato, feito de palavras, não codificado, não previsto na Constituição. O crime de não dizer a verdade, de “atacar” instituições ou autoridades, sempre sob o juízo altamente subjetivo de quem tem o poder de mexer com a liberdade alheia, sem contraditório, sem o devido processo, sem grandes explicações. Essas coisas não deveriam estar acontecendo no Brasil de hoje, mas estão. Elas aconteceram em 1947 e durante todo o regime autoritário, e muita gente achava que havíamos aprendido a lição. Mas desconfio que não.

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Fernando Schüler é cientista político e professor do Insper

Os textos dos colunistas não refletem, necessariamente, a opinião de VEJA

Publicado em VEJA de 29 de junho de 2022, edição nº 2795

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