“Eleitores votaram contra a democracia”, leio em um artigo. “Voto irracional”, em outro. Criei até um “exagerômetro”, para ranquear os artigos. Um deles falava na vitória da “idiocracia”. A economia estava crescendo, desemprego baixo, e havia uma mulher na disputa. Como aquela gente cretina foi votar em um “misógino, fascista, lunático”? De um escritor, leio que os Estados Unidos não são “um país sério”, visto que “pretos votam em um racista, mulheres em um machista, e imigrantes em um xenófobo”. Em um grande jornal, leio a incrível tese de que “Trump quer desmontar o sistema de check and balances” da democracia americana. Copiou de sua própria candidata, que em um comício disse que Trump buscava um unchecked power. Pouca criatividade. Não me surpreendo. Antes das eleições, Anne Applebaum escreveu que Trump, vejam só, andava falando como Hitler. Fiquei pensando no que Applebaum achou quando Biden chamou os eleitores de Trump de lixo. Uma eleição poderia ser a chance de uma mirada no espelho. E, quiçá, de alguma humildade.
À época do atentado a Trump, muita gente reconheceu que esse negócio de ficar associando o adversário a Hitler e a Mussolini, que chamei de “retórica existencial”, não ia terminar bem. O bom senso durou uma semana. Por estes dias, a maluquice tomou conta. E aviso: seguirá assim nos próximos quatro anos. Logo os “indicadores de democracia” irão registrar um súbito “declínio democrático”. E uma nova leva de livros tratando de “como as democracias morrem” irá povoar as livrarias. A linguagem dos superlativos, do tipo “o maior risco já vivido pelo Ocidente”, como li em um texto delirante, voltará à moda. A vantagem é que já vimos este filme. Os eleitores eram fascistas quando votaram em George W. Bush (sim, o termo já era usado); voltaram a prezar pela democracia, na era Obama; e subitamente retornaram ao fascismo, em 2016, com o primeiro Trump. Depois agiram com “racionalidade”, com Biden. Agora se converteram em nazifascistas, porque não votaram em Kamala. Em quatro anos, se o ziguezague da política americana funcionar, o universo voltará a sorrir.
A primeira lição disso é a incrível dificuldade dessas pessoas com a democracia. Algo na linha: dado que meu candidato perdeu, a civilização perdeu. Foi o mesmo com as eleições francesas, quando a Frente Nacional parecia que iria ganhar. E no Brasil, nos anos recentes. Há quem imagine que uma derrota dura possa ensinar alguma coisa a essas pessoas. Não creio. E há casos de bom senso. David Brooks, por exemplo. Em sua coluna no Times, ele fez uma dura oposição a Trump, mas é capaz de ir além dos gritos de “fascismo”. Brooks sugere que o cerne da questão é o divórcio contemporâneo entre o mundo de uma elite egressa das grandes universidades, e dominante nos meios de opinião, e o cidadão comum. Com um detalhe: a elite sendo representada pelo Partido Democrata, pelo “progressismo”, de um modo geral, ficando o Partido Republicano com o redneck. O caipira. Incluindo aí os novos rednecks perdedores da globalização e da mudança tecnológica. Vai por aí o convite a J.D. Vance, cuja história (vejam o filme Era uma Vez um Sonho) retrata a vida da América desprezada pelos intelectuais bacanas de Harvard ou Berkeley. Mas que teima em acreditar nos valores do American dream.
Scott Rasmussen conduziu uma pesquisa sobre o tema. Descobriu o seguinte: entre o top 1%, a superelite americana, 73% se identificam com os democratas, que teriam se tornado (a provocação é de Brooks) o “partido das universidades, dos bairros ricos e das zonas urbanas hipsters”. É o caso de Naty. Advogada, chique, progressista, formada em Columbia. Vive em Tribeca, 250 000 dólares anuais, gosta de circular pelo High Line Park aos domingos e, entre um e outro bom capuccino, posta alguma coisa sobre aquecimento global. Ela acha Trump um horror e lá no fundo concorda com a palavra garbage dita por Biden para definir seus eleitores. Do outro lado da pracinha está Mark, que pode morar em algum condado periférico em Michigan ou na Pensilvânia, no Rust Belt, o cinturão da ferrugem, que um dia foi o centro da indústria pesada. Mark observa a invasão de produtos chineses, anda preocupado com o emprego, com o avanço tecnológico, acha que a escola em que mandam matricular o filho é ruim e percebe que o salário compra cada vez menos coisas. Ele não é fascista, não faz ideia do que seja a cultura woke e não tem nada contra imigrantes. Mas acha que há um descontrole na fronteira. Que há muita gente ilegal. E que não seria ruim que alguém colocasse alguma ordem nessas coisas todas.
“A democracia americana recusou o drible na regra do jogo”
Naty e Mark são tipos reais. Estão longe de resumir a complexidade de uma escolha eleitoral, mas tocam no nervo da política atual. Nos swing states, observa Sam Harris, a pergunta que moveu o eleitor mediano girou em torno da questão: “Kamala Harris se preocupa mais com temas culturais, como a questão transgênero, do que em ajudar a classe média”. Seu argumento: venceu a ideia de que os americanos “não gostam muito de ver homens biológicos socarem mulheres na cara nas Olimpíadas”. E que igualdade política não significa que “mulheres trans são mulheres”. O tema é de fato mais amplo. A agenda woke é uma espécie avessa da tradição americana do self-made. Das histórias de Horatio Alger, do indivíduo capaz de vencer com base em valores e escolhas, e não agir como vítima das circunstâncias. Algo que Obama soube traduzir com seu “yes, we can”, mas que foi entregue de bandeja para os republicanos. Não acho que a política identitária esteja morta, como parece acreditar Sam Harris, mas a velha profecia de Steve Bannon continua de pé: “Enquanto a esquerda se concentrar na raça e na identidade, e nós no nacionalismo econômico, vamos continuar ganhando”.
O risco é a tentação do controle. Algo na linha: “Se a direita está ganhando o jogo, é preciso regular”. Se essa gente agora “é a mídia”, como escreveu Elon Musk, com exagero, na noite das eleições, então é preciso regular isso tudo. Muito escutei por aqui que “deveriam ter tirado Trump do jogo”, colocado “essa gente do MAGA na cadeia”. Fosse um país latino de baixa institucionalidade, não duvido que teria acontecido. Algum juiz tirando da cartola uma tese sobre “risco à democracia”, dizendo que “momentos excepcionais exigem medidas excepcionais”. E uma penca de editoriais fazendo tudo parecer muito sério e apropriado. E talvez vá aí a grande diferença. A democracia americana passou pelo teste, nos anos recentes, porque suas instituições recusaram o drible na regra do jogo. Ainda este ano, a Suprema Corte recusou por unanimidade a retirada de Trump da votação. E não há registros de parlamentares banidos e jornalistas com passaportes retidos. Sinto que por aí vai uma grande lição. É algo com o que, no fundo, deveríamos nos preocupar.
Fernando Schüler é cientista político e professor do Insper
Os textos dos colunistas não refletem, necessariamente, a opinião de VEJA
Publicado em VEJA de 15 de novembro de 2024, edição nº 2919