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A raiz do preconceito

Dobramos a aposta em um sistema estatal parado no tempo

Por Fernando Schüler Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO Atualizado em 3 jun 2024, 16h47 - Publicado em 20 abr 2024, 08h00

“Pobrinho”, “macaco”, “filho da empregada”. As palavras saíram da arquibancada em um jogo de futebol em Brasília. Jogava o time da casa, colégio bacana, mensalidade salgada, contra uma escola com alunos de menor renda, confessional. O caso ganhou alguma repercussão, o colégio diz que fará suas investigações e punirá quem deva ser punido. E a vida segue. De minha parte, vejo algo bastante sombrio nisso tudo. O.k., são adolescentes, têm muito a aprender, não se trata de fazer caça às bruxas. Mas é difícil não perceber nesse pequeno episódio um sintoma. Aconteceria precisamente o mesmo, ou quem sabe coisa pior, naquela escola, se os alunos fossem egressos do sistema estatal de ensino, que atende a 85% de nossos estudantes. O corte que define aquela atitude é renda e raça. Os eixos da exclusão brasileira.

O ponto é que somos nós que criamos, meticulosamente, um sistema segregado de educação no país, cujos números saltam aos olhos. No Pisa, o teste da OCDE, há 100 pontos de diferença entre alunos das redes privadas e estatais. De um lado, o Brasil que empata com a nota dos Estados Unidos; do outro, o país lado a lado com o Marrocos e o Uzbequistão. Leio que o Brasil está “estagnado”. A verdade é que isso é apenas uma meia verdade. Não é a educação brasileira que está no fim da fila no Pisa, mas a educação provida diretamente pelo Estado, nas redes estaduais e municipais. O sistema funciona da seguinte maneira: quem tem dinheiro contrata uma boa escola privada. Quem não tem fica à mercê das redes estatais. Na prática, criamos duas imensas bolhas. Os de maior renda, em sua maioria brancos, de um lado; os de menor renda, em sua maioria negros, de outro. É esse o Brasil que criamos. E que não nos dá direito a nenhuma surpresa quando vemos situações como a de Brasília.

Há uma vasta literatura que mostra os danos que a segregação educacional produz na sociedade. Já nos anos 1950, o psicólogo social Gordon Allport se debruçou sobre o assunto para entender as raízes do preconceito. Em um experimento, comparou unidades do Exército americano em que já havia a convivência entre soldados negros e brancos com unidades ainda segregadas. Nessas últimas, 63% dos soldados recusavam a “inclusão de negros e brancos, lado a lado”. Nas unidades em que a convivência já existia, a rejeição caía a 7%. Era justamente a convivência humana que tinha o poder de confrontar o preconceito. Não o contato esporádico, ao estilo das redes sociais. Mas o compartilhamento da experiência humana, no trabalho, na escola. Exatamente o que não fazemos, na educação básica, precisamente o lugar em que isso deveria ser feito.

A tese de Allport surge em um belíssimo filme chamado The Best of Enemies (Raça e Redenção, no Brasil). O longa retrata um fato real ocorrido no sul racista dos Estados Unidos, no início dos anos 1970. Tendo de decidir se haveria a integração das escolas, se alunos brancos e negros estudariam juntos, o juiz local realiza um grande fórum. Na prática, uma longa reunião, com dez dias de convivência entre negros e brancos da comunidade, para resolver o que fazer. Muita coisa acontece nesse meio-tempo, como é previsível que ocorra, quando a mágica do contato humano, e com ele a força da empatia, produz seu efeito. Ao final, o líder local da Ku Klux Klan, dono do posto de gasolina, reconhece que muita coisa havia mudado. Que aqueles a quem ele fora criado para enxergar como inferiores ressurgiram agora como pessoas de carne e osso, com seus rostos, sua terna e igual dignidade.

Outro argumento diz respeito a quanto a segregação danifica a mobilidade social. Quem trabalhou esse tema foi o pesquisador de Harvard Raj Chetty. Ele fez um estudo mapeando mais de 21 bilhões de conexões no Facebook, envolvendo perto de 84% dos americanos entre 25 e 44 anos. Os resultados mostram claramente o impacto positivo do capital social gerado na escola, na forma de contato com colegas e famílias de maior renda, sobre as chances de vida. E não se trata apenas de aspectos triviais, como a indicação para algum emprego. Mas da forma como moldamos aspirações. “Se você nunca conheceu alguém que fez faculdade”, diz Chetty, “terá menos estímulos para buscar uma faculdade ou um lugar como Harvard.”

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“Dobramos a aposta em um sistema estatal parado no tempo”

Allport e Chetty mostram algo bastante interessante: o compartilhamento de um mesmo mundo social produz um duplo efeito: permite a quem tem menos aspirar mais alto. E, a quem tem mais, cultivar o respeito. Não acho que pessoas de bom senso, Brasil afora, discordariam muito dessas conclusões. Na prática, porém, isso implica um enorme problema. Nunca me esqueço de uma noite, coisa de dez anos atrás, quando sugeri, em uma palestra, a ideia de que os governos deveriam dar bolsa de estudos, como é feito no ProUni, para que os alunos de menor renda pudessem escolher onde estudar. Ao final do evento, uma senhora elegante me procurou e disse, pensativa: “Quer dizer que os alunos de periferia iriam estudar lá no ‘Colégio Europeu’? (O nome é fictício. Ela se referia à escola bacana em que sua filha estudava.) “É”, respondi, “mais ou menos isso”. Ao que ela me retrucou, com uma cara já bastante preocupada: “Mas eles irão também nas festas de 15 anos?”. Foi quando resolvi encerrar a conversa.

O fato é que há muitas maneiras de fazer isso. A mais óbvia é dar aos estudantes a chance da escolha educacional. Se uma pequena e aguerrida instituição como o Instituto Ponte, no Espírito Santo, faz isso, oferecendo bolsas para alunos de menor renda estudarem em ótimas escolas, por que não poderia ser feito em escala mais ampla, a partir da ação dos governos, com algum planejamento? É evidente que poderia. Eu mesmo acompanhei, dirigindo uma instituição de elite, como foi possível que centenas de alunos de menor renda pudessem estudar economia e administração, com resultados acima da média da escola, simplesmente porque receberam uma bolsa do ProUni.

Há algo muito estranho com este país. Falamos em “diversidade”, criamos cotas, queremos resolver o gap racial nas empresas, mas silenciamos quando se trata da educação básica. Neste ambiente opaco em que se formam nossas aspirações e visões de mundo, fazemos de conta que o problema não existe. Em vez de encará-lo de frente, dobramos a aposta em um sistema estatal parado no tempo. No fundo, em um discurso cínico, a retórica de uma elite que diz: “Olha, eu ponho meus filhos na escola inglesa, mas não se preocupem, vocês aí embaixo. Em dez anos tudo vai melhorar”. Discurso tão elitista quanto aqueles xingamentos em Brasília. Porém mais perigoso, pois é feito por quem tem poder de decidir alguma coisa.

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Alguém acha que mudar esse estado de coisas é uma utopia? Talvez. O Brasil é um país imensamente conservador. Quem tem o poder de tomar decisões não depende do Estado, nessa área, e os mais pobres estão fora do jogo. Mesmo assim, sigo em frente. Prefiro apostar numa utopia com um sentido civilizatório a me conformar com a distopia de nosso apartheid educacional. E do qual aqueles gritos patéticos, na arquibancada de uma escola elegante, nos deram uma pálida notícia, por estas semanas.

Fernando Schüler é cientista político e professor do Insper

Os textos dos colunistas não refletem, necessariamente, a opinião de VEJA

Publicado em VEJA de 19 de abril de 2024, edição nº 2889

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