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A profecia de Schumpeter

No mundo da inovação, a economia de mercado faz prodígios

Por Fernando Schüler Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO 27 abr 2024, 08h00

Virou moda xingar Elon Musk. Como não temos nenhum problema de censura prévia, e ninguém foi banido das redes sem o devido processo, nossa prioridade é falar mal dessa “perigosa conspiração da extrema direita global”. Quem sabe liderada pelo próprio Musk entre uma e outra reunião sobre foguetes e telhas solares, no Texas. Não deixa de ser divertido isso tudo. Sempre foi uma boa jogada atirar no mensageiro e empurrar a mensagem para debaixo do tapete. Mas há um outro ponto aí. Elon Musk é um candidato quase perfeito para vilão de história em quadrinhos de um certo pensamento latino-americano. O sujeito que ficou rico gerando valor no mercado, abre empresas em série, não dá bola para o politicamente correto, diz o que pensa e, pecado dos pecados, gosta desse novo monstrinho moderno, que é a liberdade de expressão.

Musk não gosta lá muito de protocolos. Em uma tarde de sexta-feira, quase Natal de 2022, na sede do Twitter, recém-comprado, ele escutava sem muita paciência a explicação de uma engenheira sobre por que iria demorar oito meses para deslocar o data center da rede de Sacramento para Portland. Eram 5 200 hacks, cada um pesando 1 tonelada. Havia protocolos de segurança, conexões delicadas etc. “Vocês têm três meses”, disse Musk, irritado. “Ou estão demitidos.” Naquela mesma noite, no seu jato, sobrevoando Las Vegas, mandou o piloto dar meia volta e resolveu fazer ele mesmo o serviço. Pousou em Sacramento, alugou um Corolla, fez o chefe da segurança abrir o data center e começou a desligar as máquinas com um canivete. Mobilizou sua tropa e, no final, fez o serviço em pouco mais de um mês. Musk depois avaliou que agiu por impulso, como tantas vezes, e tomou um risco para o sistema. Mas funcionou. “Deixou claro para a turma do Twitter”, escreveu seu biógrafo, “que não deveriam mais duvidar de seu senso de urgência”.

O biógrafo é Walter Isaacson, que acompanhou Musk de perto por dois anos, e teve carta branca para escrever o que quisesse. O resultado é interessante. Um livro sobre engenheiros tentando resolver problemas, sobre um tipo obsessivo e temperamental, mas sobretudo sobre um rapaz sul-­africano, com um pai autoritário, que se converte em herói moderno da inovação. O tipo implacável, espécie de John Galt moderno, que demite 75% dos funcionários do Twitter sem piscar um olho. Que aposta todo seu dinheiro na quarta tentativa de lançar um foguete, numa espécie de jogo de tudo ou nada. O tipo preocupado em nos transformar em uma “espécie interplanetária”. O sujeito que um dia fica irritado com os pedidos obsessivos de censura vindo de um estranho país da América do Sul, e resolve dar um soco na mesa. “Se o país realmente gosta de censura, o problema não é meu”, dirá, em uma tarde quente de Austin, entre uma reunião e outra sobre robôs, foguetes e inteligência artificial.

“No mundo da inovação, a economia de mercado faz prodígios”

O que achei realmente curioso, nas últimas semanas, foi Musk ser chamado de “menino mimado”, “líder da extrema direita”, e coisas piores, aqui pelos trópicos. Me lembrei de Umberto Eco, desgostoso, falando sobre os “idiotas da aldeia”, na era digital. Musk é o sujeito que inventou o foguete reutilizável, capaz de ir e voltar do espaço e pousar elegantemente; o primeiro a levar astronautas à Estação Espacial Internacional e civis ao espaço, depois daquele voo trágico da Challenger, em 1986. Foi também o primeiro a criar uma empresa de carros elétricos realmente competitiva. Isso quando não está entretido com a interface cérebro-máquina, em sua Neuralink, ou com a criação de um robô humanoide capaz de gradativamente livrar a humanidade do trabalho braçal e pouco criativo.

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Quando lia sobre Musk, me lembrava de Schumpeter. Em parte pelo seu elogio do empresário inovador, aquele que faz “novas combinações”, que “nunca dorme tranquilo”, e cuja intuição para enxergar à frente produz o dinamismo da vida econômica. Mas também pelo seu lado melancólico. A crença reafirmada em seu último artigo, A Marcha para o Socialismo, de que o capitalismo caminhava para o fim. E não porque o socialismo fosse um bom sistema, mas por uma mecânica interna à própria economia de mercado. O capitalismo faz crescer a produtividade, ele diz, e com isso o bem-estar. E mais: viabiliza o crescimento de uma influente “casta” intelectual, feita de acadêmicos e burocratas. Uma casta que vive dos sucessos do capitalismo, mas cada vez mais distante de seu processo real de produção. Gente que não entende, ou não quer entender, como é gerada a riqueza que, logo ali abaixo da superfície, sustenta o seu interessante modo de vida.

A outra linha de força vem do próprio processo de produção cada vez mais cheio de regras, controlado por grandes corporações, de um lado, e pela intervenção governamental, do outro, de modo que todo o sistema vai perdendo o apetite pelo risco e força inovadora. Diagnóstico instigante, mas apenas parcialmente correto. De fato, os intelectuais tendem à incompreensão da economia de mercado e, por vezes, a um anticapitalismo infantil. Muito do próprio “horror a Musk” e obsessão em torno dos “bilionários”, da “meritocracia” fazem parte disso. E prossegue válida a ironia de Schumpeter de que falar mal do capitalismo, nos meios intelectuais, funciona “como uma espécie de regra de etiqueta”.

No mundo da inovação, porém, a economia de mercado ainda faz prodígios. E é aí que entra Musk. Sua vida é a negação da tese de Schumpeter. Ele vende a Zip2, aos 28 anos, ganha alguns milhões e aposta tudo em um banco digital, que seria o PayPal; na venda da empresa, ganha outros tantos milhões e aposta tudo de novo em uma improvável companhia espacial, a SpaceX. Tudo ancorado em um certo éthos. O asco pelos burocratas e “reguladores inúteis”. O culto do risco, a crença na intuição (por vezes desastrosa), no trabalho obsessivo e o desprezo por essa gente “bem-sucedida e que tira férias”. Vai nesse pacote o horror à ideologia woke e atração pelo seu contrário: a cultura libertária. Coisas que levam àquele “go f. yourself” para eventuais anunciantes que não querem investir no Twitter por causa de uma postagem sua. Valendo o mesmo para pequenos ditadores bisbilhotando contas de ativistas e jornalistas.

O livro de Isaacson deveria ser recomendado nas faculdades. Estaríamos formando uma geração de empreendedores investindo na cura de doenças, na invenção de baterias mais eficientes, nos usos inteligentes da inteligência artificial, e não uma turma formada no pensamento mágico sobre como se produz a riqueza. Só por isso já valeria a pena contar a história do sujeito que fugiu de casa aos 17 anos e hoje repete em relação a Marte a frase de Kennedy sobre a conquista da Lua: “Temos de ir lá e fazer outras coisas… porque elas são difíceis”. Porque somos humanos. Porque não sabemos do que somos capazes. E por isso precisamos tentar.

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Fernando Schüler é cientista político e professor do Insper

Os textos dos colunistas não refletem, necessariamente, a opinião de VEJA

Publicado em VEJA de 26 de abril de 2024, edição nº 2890

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