No início de abril estive em Stanford, na Califórnia, e o assunto corrente era a quantidade de empresas e pessoas indo embora do estado, em especial para o Texas. Na saída para o aeroporto, o motorista me contou a mesma história. Acha o estado bacana, mas quer deixá-lo. No seu caso, para a Flórida. Diz que em parte é pelo clima, mas também “é lá que as coisas estão bombando”. Há um incômodo com essa situação. A Califórnia, que sempre se considerou vanguarda, agora vai perdendo a competição com o principal rival. Me pareceu uma espécie de experimento natural da atual era da mobilidade, uma das três revoluções que Moisés Naím, em seu O Fim do Poder, usou para definir a nossa época. A era em que as pessoas viajam mais, o número de migrantes vive seu ápice e o trabalho remoto explodiu, em especial com a pandemia.
David Brooks tratou do tema em sua coluna no The New York Times. “Muitos de nós passamos os últimos tempos batendo no Partido Republicano”, diz ele, “e agora temos de explicar por que tanta gente está saindo dos estados azuis (democratas) para viver nos vermelhos (republicanos)”. O próprio Brooks adianta a resposta: “O ponto é que são estados com menos impostos e mais favoráveis a negócios”. Quem analisou isso com mais rigor foi Mark J. Perry, do American Enterprise Institute. Ele avaliou catorze variáveis que mais afetam o ambiente de negócios e descobriu o seguinte: em todas elas, que incluem impostos, facilidade para trabalhar e o custo burocrático para empreender, os dez estados que mais perdem pessoas e empresas estão atrás dos dez estados que mais vêm ganhando. Dois rápidos exemplos: a alíquota média máxima de imposto corporativo nos estados mais atrativos foi de 4,1%, em 2021, ante 8,3% nos estados perdedores. É o mesmo com o imposto sobre a renda: 3,8%, na média, de um lado, e 8% no lado dos que perdem. A Califórnia tem a taxa mais alta: 13,3%, e não é por acaso aquele mal-estar que percebi nos meus dias em Stanford.
O fato é que o fenômeno americano pode nos ensinar alguma coisa. A mobilidade global, de talentos, dinheiro e empresas, vai continuar crescendo, e no fundo há dois caminhos a seguir: o padrão daqueles estados que vêm ganhando o jogo, ou o padrão do lado de baixo da tabela. É por isso que me preocupo com as coisas que ando observando no Brasil. A volta da “contribuição sindical”, por exemplo, em votação no Supremo. Reduzir taxas e descomplicar a vida das pessoas é claramente um fator de dinamismo econômico. O que nossos ministros estão fazendo? Criando taxas “meio coercitivas”, na boa definição que escutei, para financiar sindicatos. Sindicatos são perfeitamente bem-vindos, em uma economia dinâmica, como qualquer outra organização. Desde que a adesão das pessoas seja voluntária. O que nossos ministros querem, na prática, é dar poder a uma assembleia sindical para definir um desconto em folha de pagamento de todos os trabalhadores. Se alguém não quiser pagar, terá de prestar muita atenção e mandar uma carta, ou coisa parecida, pedindo sua dispensa. Alguém poderia dizer que dá na mesma decidir pagar ou pedir para não pagar. Mas isso é apenas um truque. A vantagem real é fazer o sujeito pagar por descuidar de um prazo, de um formulário, de uma burocracia qualquer. O país malandro que, mesmo quando finge simplificar, dificulta a vida das pessoas. E um recuo na lógica da reforma trabalhista, que o Brasil fez a duras penas, recentemente (leia a reportagem na pág. 48).
“A modernização esbarra na ‘tirania das pequenas decisões’ ”
No debate sobre o novo arcabouço fiscal, parecemos também andar na direção dos blue states. Na prática, o governo vai aumentar o gasto público, de um lado, e os impostos, do outro. “Corrigir o déficit pelo lado da receita”, na boa definição de Henrique Meirelles. O ministro Haddad fala em um aumento de até 150 bilhões de reais. Algo próximo a 8% de crescimento real da receita federal. Nossa carga tributária é a maior do continente, o gasto público foi de 13% para 19%, nas últimas três décadas, e o crescimento, pífio. Aproximadamente a metade do que cresceu a América Latina e um terço da economia americana. Mesmo assim vamos dobrar a aposta.
Semanas atrás participei de um debate e arrisquei uma pergunta inconveniente: por que ninguém discute a redução dos impostos na reforma tributária? Percebi o mal-estar. Todos já nos conformamos, no Brasil, com nossa incapacidade crônica de reforma do Estado. Achamos que já está bem fazer uma “simplificação”, desde que ninguém pague mais do que já está pagando, e os governos não percam um centavo do que já arrecadam. Por um momento, parecia que iríamos em outra direção. Nos últimos quatro ou cinco anos, caiu 8% o número de funcionários federais, pela restrição de novos concursos, e o Congresso ensaiou fazer uma reforma administrativa. O governo conseguiu um superávit pouco acima dos 50 bilhões de reais, em 2022, e a única maneira de seguir em frente era aprofundar as reformas, revisar incentivos, enfrentar o problema pelo lado do gasto, não do aumento de tributos. Não fizemos isso. Resolvemos “entrar em 2023 com um déficit recorde de 228 bilhões de reais”, como observou o economista Marcos Mendes, “quase todo provocado pela PEC da transição e medidas conexas, escolha do atual governo”. E dos eleitores, acrescento, pois nada disso era difícil de prever, observando-se o que era dito na campanha.
O fato é que vivemos numa encruzilhada. O Brasil figura na 127ª posição no ranking de liberdade econômica da Heritage Foundation. Somos uma economia “basicamente não livre”. Os critérios do ranking são muito próximos aos utilizados pelo professor Mark Perry para explicar por que as pessoas estão saindo dos blue states para os red states. Não tenho ideia se existe vontade política, no país, para realmente sair dessa posição. Processos de modernização são difíceis. Esbarram a todo momento na “tirania das pequenas decisões”. Cada escolha, isoladamente, seja uma reforma, uma desestatização, um ajuste tributário ou regulatório, não resolverá o problema como um todo, e terá contra si a resistência de setores que perdem, no curto prazo. Os casos dos recuos no Marco do Saneamento, nas privatizações, na Lei das Estatais, ou a volta do imposto sindical disfarçado, são típicos exemplos. Outra questão é que o “efeito red states” já vem acontecendo. O Brasil, talvez sem perceber, vai se transformando em um país exportador de talentos, e há quem fale em uma “diáspora brasileira”. Foi de menos de 2 milhões para pouco mais de 4 milhões, na última década, o número de brasileiros que vivem no exterior, e uma pesquisa recente do Datafolha mostra o dado incômodo que 76% de nossos jovens “têm muita ou alguma vontade de sair do Brasil”. Por último, há o avanço implacável da demografia. Daqui até 2050, simplesmente dobrará o contingente de brasileiros com mais de 60 anos. Arriscamos ficar velhos sem enriquecer. Alguns falam na armadilha da renda média, mas o conceito pode ser enganoso. O que nos espera, com nossos recuos e indecisões, é um país de renda média fortemente concentrada, com 25% ou mais de sua população, em idade produtiva, sistematicamente dependente do Estado e vivendo abaixo da linha da pobreza. Não penso que seja esse o país que a sociedade deseja, como escuto por aí, em conversas elegantes, mas eventualmente seja o caminho para o qual nossas escolhas, no mundo real da política, estão nos conduzindo.
Fernando Schüler é cientista político e professor do Insper
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Publicado em VEJA de 3 de maio de 2023, edição nº 2839