Nos roteiros de passeios turísticos guiados de Los Angeles, um em particular arranca risos: trata-se da Avenida Hawthorn, logo atrás da Hollywood Boulevard, onde fica a calçada da fama. Nesse endereço quase oculto o ator inglês Hugh Grant foi pego em flagrante em um carro com a prostituta Divine Brown, em 1995, e detido sob a acusação de “ofensa ao pudor”, segundo o relatório da polícia. Na época, Grant despontava como o mocinho de comédias românticas, revelado um ano antes pelo filme britânico Quatro Casamentos e Um Funeral. O ator teve de se desculpar publicamente pelo ocorrido.
O evento que foi de traumático a folclórico é um ponto inescapável da sua biografia e ele passou recentemente a se divertir com o ocorrido — em outubro deste ano, ao lançar seu novo filme justamente na Hollywood Boulevard, Grant declarou, irônico: “Estou muito feliz de estar aqui. Esse sempre foi um lugar que me trouxe tremenda sorte”. No trabalho em questão, o astro também aproveita para exorcizar o passado. O novo longa de Grant, Herege (Heretic, Estados Unidos e Canadá, 2024), que entra em cartaz no Brasil na quarta-feira, 20, é seu primeiro filme de terror em 36 anos. A produção vem rendendo elogios ao ator, hoje com 64 anos, que interpreta um homem cético e perturbado, que aprisiona duas garotas mórmons e as coloca sob um teste de fé imaginado por ele mesmo.
Curiosamente, o início da guinada na carreira do ator começou lá atrás, impulsionado pelo episódio do vexame na Hollywood Boulevard. Naquela época, Grant estava nos Estados Unidos para lançar o filme Nove Meses, outra trama açucarada, mas sob o selo de Hollywood. Com a imagem manchada pelo escândalo sexual, ele voltou a investir em produções britânicas, de onde saiu o adorável Um Lugar Chamado Notting Hill (1999) e o ácido O Diário de Bridget Jones (2001) — neste último, o ator interpreta o anti-herói canalha, papel que, segundo o próprio, é o que melhor o representa. O fato de ter emplacado bons papéis nessas duas produções não impediu que sua carreira voltasse a ficar estagnada.
Conhecido por ser um tanto rabugento — e cada vez com menos colágeno no rosto —, Grant perdeu o ar de bonitão e, aos poucos, se viu no lugar de coadjuvante. Foi salvo graças à televisão. Em 2018, na excelente minissérie A Very English Scandal, ele se entregou sem amarras ao papel de Jeremy Thorpe, líder do Partido Liberal entre 1967 e 1976, que, enquanto apoiava a lei contra homossexuais, tinha um amante homem. Em 2020, estrelou outra minissérie, The Undoing, da HBO, ao lado de Nicole Kidman, interpretando um médico ricaço acusado de matar a amante.
Seu talento, agora, é posto à prova em Herege. Na trama, ele interpreta Reed, um homem recluso e aparentemente inofensivo que demonstra interesse em receber a visita de duas missionárias da Igreja de Jesus Cristo dos Santos dos Últimos Dias. Cheias de convicção, as irmãs Paxton (Chloe East) e Barnes (Sophie Thatcher) sobem em suas bicicletas e vão até a casa, onde tentam convertê-lo. Logo ambas se percebem presas como João e Maria. O senhor sorridente, que tanto as questionava sobre os ensinamentos do profeta Joseph Smith, se revela um perigo iminente.
O roteiro de suspense é cheio de citações do universo pop. Em determinado ponto, ao explicar para as “visitantes” que as religiões são derivações da busca por controle humano, Reed cita o processo de plágio movido pela banda The Hollies contra o Radiohead por causa da canção Creep, de 1993. A temática densa do filme se dissolve no senso de humor do ator — e também no incontornável charme que fez dele uma estrela mundial.
Nos últimos tempos, Grant já vinha investindo pesado em filmes nos quais poderia exibir sua versatilidade. Foi o vilão do infantil Paddington 2, experimentou o universo da fantasia interpretando um homem para lá de patético em Dungeons & Dragons: Honra entre Rebeldes e se pintou de laranja para encarnar um Oompa Loompa no musical Wonka. Esses filmes foram passos ousados na carreira, mas resultaram em saldo bastante positivo. Paddington 2 lhe rendeu uma indicação ao Bafta, o Oscar inglês. Em Dungeons & Dragons, contribuiu para a diversão, e o embaraçoso papel de Oompa Loompa pareceu talhado para ele: nessa versão, o personagem da A Fantástica Fábrica de Chocolate é um homenzinho ardiloso, mal-humorado e sempre pronto a tirar o protagonista do sério. Em Herege, o ex-galã agora mostra que é capaz também de fazer as plateias temê-lo e até mesmo odiá-lo. Uma virada assombrosa.
Publicado em VEJA de 15 de novembro de 2024, edição nº 2919