Nove em cada dez restaurantes de cozinha italiana em São Paulo e no Brasil têm no cardápio spaghetti alla carbonara, um prato de massa originário da região italiana do Lazio, onde se encontra Roma, que também pode ser preparado com vermicelli, bucatini ou penne. No seu molho vão pancetta (toucinho curado em sal, especiarias e não defumado) ou guanciale (bochecha de porco defumada), que fritam na banha ou azeite; e ainda ovos batidos, queijo pecorino romano ralado e pimenta-do-reino moída. Alguns restaurantes se ufanam de oferecer “o melhor carbonara da cidade” e as opiniões da clientela se dividem radicalmente, como na política e no futebol, embora nem sempre respeitem a receita original.
A invenção do prato costuma ser relacionada com a tomada de Roma, ocorrida em 1944, no final da II Guerra Mundial, pelos soldados do então tenente-general Mark Clark (1896-1984), comandante do 5ª Exército dos Estados Unidos e das Tropas Aliadas. Anteriormente, a cidade esteve ocupada pelos nazistas. É uma história mais ou menos romântica. Os aliados encontraram a capital italiana na penúria, com falta de água, energia elétrica, comida. Sofrera inclusive bombardeios. Em novembro de 1943, por exemplo, um avião das Tropas Aliadas jogou quatro bombas sobre o Vaticano, quebrando as janelas da cúpula da Basílica de São Pedro e atingindo a Rádio Vaticano.
No período da tomada, só as tropas de Mark Clark dispunham de alimentos. Usando os ingredientes da ração dos soldados americanos, um cozinheiro romano teria criado o spaghetti alla carbonara. Trabalhava em uma trattoria do Vicolo della Scrofa, no Centro Histórico, que desapareceu. Os militares chegaram ali levando o que cabia na mochila: ovos, bacon e noodles (macarrão instantâneo).
Então, solicitaram ao cozinheiro que os preparasse e ele fez tudo separadamente. Quando a comida chegou à mesa, os militares misturaram o ovo e o bacon, pois estavam fartos daqueles sabores invariáveis; e os colocaram sobre os noodles. Corre a lenda paralela de que, na falta de panela, o prato foi misturado no capacete dos militares.
Historiadores da gastronomia, porém, contestam essa versão. Afirmam que o prato é uma evolução da veterana pasta (massa) cacio (queijo de ovelha ou cabra) e ova (ovo), originária do Lazio; ou de uma receita parecida, da vizinha Abruzzo, que os carbinai (carvoeiros, produtores de carvão vegetal) preparavam na véspera do trabalho e levavam fria para a mina. Antes da libertação da cidade pelas Tropas Aliadas, ou seja, durante a ocupação da capital italiana pelos nazistas, muitas famílias romanas se refugiaram em localidades do Lazio e nas montanhas de Abruzzo. Assim teriam assimilado a receita de cacio e ova.
Uma explicação para o nome carbonara: o acréscimo de pimenta-do-reino moída, que lembra carbone (carvão, em italiano).
Segundo a Grande Enciclopedia Illustrata Della Gastronomia (Selezione dal Reader’s Digest, Milão, 2000), “os traços deste prato na cozinha romana, antes do final da II Guerra Mundial, são vagos ou inexistentes e se limitam a alguns testemunhos orais, recolhidos porém em tempos recentes”. Mesmo assim, os historiadores da gastronomia a que nos referimos apostam na sua precedência. Alguns creditam a invenção da receita a Ippolito Cavalcanti (1787-1859), cozinheiro e literato napolitano. Ele a teria publicado no tratado Cucina Teorico Pratica, editado pela primeira vez em 1837 e acrescido, na edição de 1839, do apêndice “Cusina Casarinola co la Lengua Napolitana”.
Outros associam o spaghetti alla carbonara à sociedade secreta Carboneria, fundada na Itália por volta de 1810, que atuou naquele país, na França, Portugal, Espanha, Brasil e Uruguai, defendendo ideias patrióticas, liberais e anticlericais. Entretanto, faltam provas de que preparasse a receita de massa. O diretor de cinema Luigi Magni aumentou a confusão no filme La Carbonara, ambientando-o na Roma papal. Colocou em cena uma mulher que administra uma trattoria famosa pelo preparo do spaghetti alla carbonara.
Parece existir em São Paulo uma prova de que o prato foi criado antes da tomada de Roma pelas Tropas Aliadas. O historiador, cientista político e gastrônomo João Ferraz, seu apreciador devotado, tem enquadrada na parede de casa uma joia: a receita de spaghetti alla carbonara escrita por sua madrinha, Lina Bo Bardi, a arquiteta modernista romana, radicada no Brasil, conhecida por projetar o ousado e belíssimo Museu de Arte de São Paulo (MASP). Ela chegou na cidade em 1945 já sabendo preparar spaghetti alla carbonara.
Quem ensinou a receita a Lina Bo Bardi? “Seu conterrâneo e amigo Roberto Rossellini, um dos mais importantes cineastas do neorrealismo italiano”, responde João Ferraz. Por sinal, o diretor do filme Roma, Città Aperta (Roma, Cidade Aberta), passado justamente no período da ocupação nazista da cidade, fazia o prato para receber amigos. O spaghetti alla carbonara teria sido inclusive protagonista do rompimento de seu relacionamento com a temperamental atriz Ana Magnani.
Conta-se que ela pousou o prato que comia, de spaghetti alla carbonara, em um restaurante romano, na cabeça do parceiro. Motivo: Roberto Rosselini acabava de receber um telegrama de amor da atriz Ingrid Bergman, com quem se casaria depois, finalizado com a declaração “Ti amo”. Se desde essa época o prato já era saboreado pelos romanos, dificilmente foi criado com os ingredientes da ração dos soldados americanos.
Os italianos defendem até as últimas consequências o spaghetti alla carbonara e atiram pedras em quem se atrever mudá-lo. Em 2016, o canal YouTube do site francês Demotivateur Food virou a receita de cabeça para baixo. Para começar, divulgou um carbonara à base de farfalle (massa em formato de borboleta ou gravatinha), que mandou cozinhar junto com cebola cortada e pancetta em pedacinhos, escorrer a água, adicionar creme de leite fresco, pimenta e colocar em cima uma gema de ovo crua. O jornal romano La Repubblica chamou a “inovação” francesa de “sacrilégio” e “desastre”.
Em 2017, a apresentadora inglesa Nigella Lawson cometeu mais um atentado contra o spaghetti alla carbonara. Incorporou ao prato noz moscada, vinho e publicou essas ousadias no Facebook. Na apresentação, escreveu que a receita aparece preparada desse jeito por Meryl Streep, no filme americano A Difícil Arte de Amar, de 1986, do gênero comédia dramática, dirigido por Mike Nichols, originalmente intitulado de Heartburn. A ofensa mais leve que Nigella Lawson recebeu dos italianos foi ser chamada de “assassina”.
Uma discussão no âmbito da ortodoxia: a receita mais autêntica leva pancetta ou guanciale? À frente do projeto Casa do Carbonara, em São Paulo, que abre para jantares preparados por ele, para amigos e convidados especiais, João Ferraz não tem dúvidas: pancetta. “Vem de um corte suíno maior, com mais carne e ainda por cima mais barato”, diz. “Não podemos esquecer que o prato nasceu entre a população pobre”. Bacon e creme de leite, nem pensar. A opinião de João Ferraz é fulminante: mesmo em São Paulo, cidade com grandes restaurantes italianos, há poucos que preparam o spaghetti alla carbonara como deve ser.
SPAGHETTI ALLA CARBONARA
RENDE 4 PORÇÕES
INGREDIENTES
.320 g de spaghetti de grano duro n. 5
.150 g de pancetta
.20 ml de azeite extravirgem de oliva
.150 g de queijo pecorino
.70 g de queijo grana padano
.8 ovos caipiras fresquíssimos
.Pimenta-do-reino moída na hora a gosto
.Sal grosso (para a água da massa)
.Grãos de pimenta-do-reino (para a decoração)
PREPARO
1. Corte a pancetta em cubos de 1/2 cm e doure-os no azeite, cuidando para não secarem. Apague o fogo e reserve.
2. Rale os queijos e coloque-os em uma tigela funda. Adicione 4 gemas, 4 ovos inteiros e uma generosa quantidade de pimenta-do-reino. Misture tudo até obter um molho cremoso e liso.
3. Leve ao fogo uma panela com água (a proporção ideal é 2 litros de água para cada 100g de massa e 10 g de sal grosso para cada litro de água). Assim que a água ferver, coloque o sal e em seguida a massa. Escorra-a após 11 minutos, reservando uma xícara da água do cozimento.
4. Despeje a massa (com a água reservada) na frigideira, com a pancetta, leve ao fogo e misture até a água evaporar completamente.
5. Retire a frigideira do fogo e coloque sobre a massa o molho de queijo e ovos, misturando para que o queijo fique bem incorporado à massa. A ação deve ser rápida, para evitar que os ovos cozinhem. Não é necessário colocar sal.
6. Se desejar, polvilhe mais um pouco de pimenta-do-reino, decore com os grãos de pimenta e sirva imediatamente.
Receita preparada pelo chef romano Marco Renzetti, em São Paulo, SP