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A máfia na mesa

O procurador italiano que perseguia a organização criminosa na Sicília muda de região e de área de ação, mas deixa observações apetitosas sobre a comida dos seus sequazes

Por J.A. Dias Lopes Atualizado em 30 jul 2020, 21h43 - Publicado em 28 set 2016, 15h43
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  • É uma pena que o procurador italiano Ignazio De Francisci, 63 anos, um dos mais severos perseguidores da Máfia Siciliana, tenha desistido de lançar um livro minucioso sobre a cozinha da organização criminosa que perseguiu nos últimos trinta anos. Junto com colegas aguerridos, aplicou-lhe penas que totalizam 2.665 anos de prisão. Ninguém teria mais autoridade para o trabalho gastronômico. Ele aprendeu a apreciar os aromas e sabores da cozinha da Máfia durante as investigações. Escreveu até artigos em jornais e revistas da Itália sobre ela.

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    MAFIA - Ignazio De Francisci - DIVULGAÇÂO

    MAFIA – Ignazio De Francisci – DIVULGAÇÂO

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    Poderia ter mudado de idéia porque seus artigos provocaram algum mal-estar entre os companheiros de ofício. Eles estranharam que um procurador antimáfia vislumbrasse um lado aprazível na organização criminosa. Além disso, De Francisci não atua mais na região da Sicília, no Sul da Itália, berço da Máfia. Acaba de ser transferido para a Emília-Romanha, no Norte do país, onde o nomearam procurador geral da Corte de Apelo de Bolonha. A culinária dali é completamente diferente da siciliana. Bom de garfo, De Francisci seguirá apreciando a boa mesa. Mas, em vez de spaghetti alla Norma, feito com berinjela frita, tomate pelado, ricotta seca, alho e pimenta-do-reino, agora saboreia lasagne alla bolognese.

    De Francisci ficou conhecido como auxiliar de Giovanni Falcone (1939-1992), o juiz que deflagrou a maior ofensiva antimáfia da história e morreu quando o automóvel no qual viajava foi dinamitado pela organização criminosa, sob o comando do megabandido Giovanni Brusca, o Porco. Estava com a mulher e três seguranças. Todos foram lançados aos ares ao passarem por cima de um duto de águas pluviais entupido de explosivos.

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    Pelo trabalho brilhante contra o crime organizado na Sicília, De Francisci foi promovido a procurador-chefe do pool antimáfia em 1999. Embora não a tenha eliminado, reduziu drasticamente sua influência. Antes e depois da nomeação, entrou em prisões para colher depoimentos, inclusive no Carcere Dell’ Ucciardone, de Palermo, onde estiveram inúmeros mafiosos. Ali ficou preso Tommaso Buscetta, em 1984, depois de ser extraditado do Brasil e antes de se converter no primeiro grande “pentito” (arrependido) da Máfia. Graças às suas delações, o juiz Giovanni Falcone acelerou a devassa do crime organizado.

    MAFIA - pecora bollita na panela

    MAFIA – pecora bollita na panela

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    Por estranho que pareça, nas celas do Carcere Dell’ Ucciardone, os mafiosos promoviam demorados banquetes. Chamavam-se “mangiate” ou “schiticchi” (comilanças, em siciliano) e os mais importantes aconteciam no Natal e Páscoa. O chefão também festejava com bons pratos seu aniversário e onomástico (dia do santo com o nome dele). “Ser admitido (para comer) em algumas celas era sinal de poder, enquanto ser excluído podia significar que aquele homem se tornara (…) marginalizado pela organização”, contou De Francisci em um artigo.  Nesse caso, a vida do sujeito passava a valer pouco ou nada.

    As autoridades fechavam os olhos para o fato de os mafiosos cozinharem nas celas porque eles recusavam os alimentos oferecidos pelas autoridades, desprezando tudo o que vinha do Estado, e poderiam enfrentar problemas de saúde. Sempre que possível, comiam apenas o que lhes trazia a mulher ou a família. De Francisci recorda do aroma das berinjelas fritas que, emanando dos fogões das celas, inebriava os corredores. Certa vez, expressou ao mafioso, cujo depoimento tomava, a admiração por aquele perfume apetitoso. “Instintivamente, imaginei aquelas berinjelas dentro da ‘mafalda`, meu pão preferido, profundamente ´palermitano`, com as gotas de azeite escorrendo na mão”, recordou o procurador. “O clima mudou, o réu continuou a não me dizer nada, mas seu rosto se distendeu”.

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    MAFIA - Carcere Dell’ Ucciardone

    MAFIA – Carcere Dell’ Ucciardone

    Segundo De Francisci, os mafiosos repartem os alimentos com os companheiros de prisão, inclusive por uma questão de solidariedade. Na década de 80, um grupo pertencente às  “famílias” (grupos com vínculos de afinidade, que têm um chefe e controlam determinadas áreas) de Marsala e Mazara Del Vallo foi parar no mesmo presídio. Dias depois, dispunham de um grande refrigerador para conservar os alimentos perecíveis, obviamente  trazidos de fora. “Havia ali o melhor peixe do canal da Sicília”, diz. No passado, os mafiosos podiam comer nas celas dos outros. O endurecimento da repressão à Máfia acabou com essa liberalidade.

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    Uma receita mafiosa que o procurador fez questão de provar foi a pecora bollita (ovelha cozida). Evidentemente, não poderia ser preparada por nenhum criminoso. É um prato consumido ritualmente. Troca-se a água três vezes, usando-se a última na minestra (sopa) que antecede a carne cozida. Certa vez, porém, De Francisci encontrou um grupo de carabinieri (militares das forças armadas e de segurança da Itália), todos sicilianos, preparando a pecora bollita. O cozimento, iniciado no final da tarde, já estava na metade e só acabou tarde da noite. “Logo que cheguei já senti o aroma do caldo”, relembra. “A seguir, provei uma sopa delicada e harmoniosa. Quando veio a ovelha, cozida lentamente, tinha aromas justos e carne deliciosa”.

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    MAFIA - ovelha

    MAFIA – ovelha

    A Máfia nasceu no interior da Sicília, foi ali que construiu e espalhou capilarmente sua organização secreta e desenvolveu sua dieta peculiar. Daí, conforme o procurador, o fato de seguir até hoje o cardápio austero da população camponesa e litorânea: verduras e legumes, incluindo berinjela, alcachofra, fava e alcaparra; pouca carne, de preferência ovina ou caprina; massas à vontade, sempre com molho de tomate e às vezes incorporando sardinha e alice; peixes, moluscos e crustáceos; frutas e doces como cassata e cannoli.

    Hoje, a Máfia está dividida em pequenas células, a fim de reduzir o conhecimento que os homens do “baixo clero” têm dos chefões e dos atos que praticam. Os criminosos se alimentam cada vez menos em público, não ficam juntos à mesa, nem realizam grandes banquetes, até porque nas prisões são vetados pelas autoridades. Fazem isso não só para escapar da perseguição policial e das malhas da justiça, mas também para evitar os estragos dos “pentitos”. Enfim, não se pode mais ver a Máfia à mesa. Até observadores privilegiados, como De Francisci, teriam dificuldade de saber o que os mafiosos estão comendo.

     

    RECEITA – PECORA BOLLITA (Ovelha Cozida)

    RENDE 6 PORÇÕES

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    INGREDIENTES

    – PARA A OVELHA

    Caponata para acompanhar (Dourar em azeite cubos de berinjela, aipo e cebola. Juntar cubos de tomate, alcaparras, azeitonas, pinoli, uva passa e temperar com vinagre balsâmico, sal, pimenta e uma pitada de açúcar. Cozinhar por cerca de 10 minutos, cuidando para os ingredientes não perderem a textura. Servir a caponata quente ou fria, conforme preferir)

    – PARA A MINESTRA

     

    PREPARO DA OVELHA

    1. Tirar fora o excesso de gordura da carne e deixá-la de molho por 30 minutos numa solução de vinagre diluído em igual quantidade de água. Retirar a carne do molho, passar para uma panela e levar ao fogo com bastante água. Quando levantar fervura, trocar a água e ferver novamente. Repetir a operação pela terceira vez. Passar o caldo pelo coador e reservar.

    2. Numa panela de fundo grosso, murchar a cebola no azeite. Juntar a carne cortada em pedaços e deixar dourar. Colocar o aipo, os tomates, a linguiça e a pimenta. Temperar com sal e ir colocando o caldo do terceiro cozimento, aos poucos. Cozinhar lentamente, por cerca de 3 horas.

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    PREPARO DA MINESTRA

    4. No fundo de um prato refratário, distribuir o toucinho. Colocar em cima uma camada de pão e outra de queijo.

    5. Numa tigela, misturar o alho, a salsinha, a hortelã, a pimenta e o sal. Polvilhar esses temperos sobre o queijo e fazer novas camadas de pão, queijo e temperos, até quase completar o refratário.

    6. Finalizar colocando por cima, lentamente, um pouco do caldo quente, o suficiente para amolecer o pão. No final, o prato deve ficar úmido.

    7. Levar ao forno aquecido a 200ºC, até gratinar a superfície.

     

    FINALIZAÇÃO

    8. Enquanto a ovelha cozinha na panela, retirar a minestra do forno e servi-la em temperatura moderada.

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    9. Quando a carne estiver bastante macia, levá-la à mesa acompanhada da Caponata.

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