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Pelo sinal da cruz: o que está por trás de um símbolo universal

Historiadora brasileira publica uma enciclopédia sobre o emblema que, além de ícone do cristianismo, marca presença em inúmeras outras culturas

Por Diogo Sponchiato Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO Atualizado em 7 fev 2024, 12h47 - Publicado em 7 fev 2024, 11h01

Ela é traçada e reverenciada desde as origens das civilizações, ultrapassando fronteiras geográficas e temporais. Foi adotada, em suas inúmeras variações, por povos tão distintos como egípcios e andinos, e abraçada por religiões com bilhões de seguidores, do cristianismo ao hinduísmo. Passou a estampar bandeiras de países, hospitais, peitos de devotos (e roqueiros) e escudos de times de futebol. Se prestar atenção, haverá uma cruz dentro ou nos arredores da sua casa.

Uma construção tão onipresente só podia render um livro de peso. Literalmente. Universo Simbólico da Cruz, da historiadora Dalva de Abrantes, ostenta 2,5 kg, distribuídos em 803 páginas. Fruto de farta pesquisa, enriquecida com centenas de ilustrações, a obra publicada pela WMF Martins Fontes é uma espécie de enciclopédia desse desenho poderoso formado pelo cruzamento de duas linhas retas.

“Se comumente vemos formas cruciformes em rituais sagrados e narrativas cosmogônicas, deve-se ao fato de nossos ancestrais enxergarem o cruzamento como algo mágico e acreditarem que nesse ponto poderiam realizar conexões com o centro do universo”, escreve a professora logo no primeiro capítulo.

A cruz ajuda a ordenar a existência e o universo – em muitos sentidos. Remete aos pontos cardeais, ao eixo do mundo (Axis mundi) e à árvore da vida. Não à toa, nos acompanha desde o berço da história (ou melhor, pré-história), erigindo-se como ícone místico, religioso, artístico e secular, ao qual aderiram pagãos, crentes e ateus.

Universo Simbólico da Cruz

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No livro de Dalva de Abrantes, percorre-se o imaginário e itinerário da cruz nesses múltiplos caminhos, que, claro, se cruzam com frequência. Assim caminhamos pelas sendas das religiões – com destaque, evidentemente, para o cristianismo, que, a partir do martírio de Cristo, elevou a imagem a emblema maior de uma igreja e de uma civilização -, pelas rotas da arte (nas telas de Grünewald, Dalí, Chagall…), pelas trilhas do uso e abuso do símbolo em empreitadas bélicas e movimentos nacionais.

E aqui é impossível não desembocar no território da cruz suástica, apropriada pelos nazistas, mas, como explica a professora, um marco ancestral a estampar de figuras de Buda e divindades hindus a tapeçarias dos índios navajo, nos Estados Unidos.

Universo Simbólico da Cruz também dedica um bom volume de páginas à história nacional. E é assim que encontraremos a cruz na elaboração do mito de Tiradentes, o Cristo brasileiro, e nas manifestações favoráveis e contrárias ao Golpe Militar de 1964 e à ditadura que se seguiu. A mesma cruz que ampara o Cristo Redentor em seu gesto de acolhimento: esteio e orgulho de uma cidade e de um país.

É de imaginar a cruz, no melhor dos sentidos, carregada pela autora até concluir a empreitada. E a sensação transcendente de dever ou promessa cumprida ao ver a cruz de papel adornando a capa do livro.

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Com a palavra, Dalva de Abrantes.

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Como surgiu a ideia de escrever uma espécie de enciclopédia da cruz enquanto símbolo universal?

Tudo começou em 2013, quando o Papa Francisco veio ao Brasil para o evento da Jornada Mundial da Juventude. Na época fui convidada a fazer a curadoria de uma exposição no CCBB Centro Cultural Banco do Brasil do Rio de Janeiro, chamava-se Crux Crucis Crucifixus. O nome proposto não deixava dúvidas: seria uma grande mostra sobre a iconografia da cruz cristã.

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A última sala estava reservada para deficientes visuais, mas, ao invés de repetir o mesmo conteúdo do resto da exposição, acrescentei exemplos de cruzes que fugiam do convencional, como a chacana dos povos andinos, a cruz ankh dos egípcios antigos, a roda do sol dos germanos, a suástica e a cruz basca. Além delas, anexei muitas que vinham da tradição cristã, mas eram menos conhecidas, como a cruz alfa e ômega, a tau, a invertida, a dissimulada, o lábaro, a sautor e a nika, entre outras.

A minha proposta inicial era encerrar a exposição com a ideia de universalidade e diversidade. Apenas isso. Porém, o deleite e a surpresa do público
diante destas formas abriram meus olhos para novas pesquisas. Resultado: um livro de 803 páginas e 644 imagens selecionadas. Definitivamente, o simbolismo da cruz é um tema sem fim.

Que aspecto, história ou descoberta considera a mais fascinante na sua jornada de pesquisas para o livro?

Eu já tinha consciência da universalidade e da diversidade do símbolo, mas nem de longe tinha conhecimento da extensão dessas duas qualidades.
Era preciso comprovar e a resposta estava na Arqueologia e na Antropologia. A cruz nasceu para representar o movimento do sol no céu. Através de duas linhas entrecortadas, nossos antepassados pré-históricos criaram uma forma que significava ao mesmo tempo os quatro pontos cardeais e as quatro estações do ano, ou seja, era a representação visual do tempo e do espaço.

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Sabemos que esse fenômeno, resultado de um pensamento abstrato, ocorreu em várias civilizações. Na sua origem mais remota, a cruz não era sagrada apenas por conter o sentido de ordem cósmica do universo, mas também por simbolizar a Árvore da Vida. Esse antigo mito, segundo Jung e Mircea Eliade, é um arquétipo de ascensão que interliga o humano ao divino. A verticalidade da árvore sagrada permite a intercomunicação entre os mundos dos mortos, dos homens e dos deuses, uma ideia que está presente em várias mitologias do Oriente Médio, do antigo Egito e da Ásia, como também em tribos indígenas e africanas.

Ela surge como elemento fundamental na narrativa bíblica do Éden, assim como é o ponto de partida no budismo. A Árvore Sagrada reflete os
ciclos de regeneração vegetal existente entre a semente germinada e os frutos, contempla a ideia de morte, vida e ressurreição. Em outras palavras, a cruz símbolo de identidade do cristianismo é uma síntese de todas as cruzes primordiais. O cristianismo assimilou o simbolismo arcaico e universal contido nas muitas Árvores da Vida e ampliou seu sentido.

Em um mundo assolado por elementos apocalípticos – pestes, fome e guerras -, que faceta da simbologia da cruz julga a mais potente e atual?

Esta é uma pergunta complexa que envolve tanto o sentido teológico quanto o histórico da cruz. A morte de Jesus de Nazaré é um fato real, testemunhado e registrado em textos. A primeira dificuldade para entender o símbolo da cruz é transpor a imagem do abominável instrumento de tortura para a imagem-signo de salvação. Se as crucificações eram consideradas o pior castigo público de humilhação e sofrimento, como enxergar na cruz algo que não fosse depreciativo?

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A mudança se deu ao transformarem o objeto real e concreto de madeira num símbolo e tornarem sua forma uma representação de ideias. Ela é Cristo, a Encarnação, o Deus-Homem. No Novo Testamento, Deus e Cristo estão unidos e espelhados. O cerne de toda a simbologia cristã reside no mistério da Eucaristia, algo difícil de ser explicado em termos racionais, mas possível pelo pensamento simbólico. Cruz é ressureição e redenção, ou seja, vida eterna e libertação. Sem ressurreição, o cristianismo não existiria.

Do ponto de vista mitológico, Cristo é o Herói da Transformação e da Libertação. Mas foi o ideário de amor e de igualdade o fator determinante que permitiu a adesão das massas. Os primeiros cristãos almejavam uma abrangência social plena, queriam atingir pobres, plebeus e os notáveis. Se o cristianismo fosse apenas uma religião de escravos, provavelmente não teria perturbado o Estado Romano.

Em 110 d.C., criaram a palavra “católico”: katholikós, de origem grega, é a junção de kata (junto) e holos (total), que quer dizer “universal”. Ou seja, desde o início os cristãos buscavam a universalidade na promessa do Reino de Deus, num mundo onde não houvesse mais distinção entre romanos e estrangeiros, entre escravos e senhores. Nas primeiras representações, a cruz existia como símbolo visual e o crucificado somente era expresso por palavras. Cristo era ideia e verbo, não imagem.

Mas o que significa a cruz nos dias atuais? Em tempos de peste, fome, guerras e injustiças? À primeira vista nos parece que a cruz está distante e precisa urgentemente ser revisitada e resgatada no significado dado pelo apóstolo João, ao dizer que Deus é Amor. Cristo pregava a não-violência, promovia a igualdade, apresentava-se desarmado, alimentava os necessitados e acolhia os excluídos.

A ideologia da cruz está em crise, é verdade. Parece que hoje nada mais faz sentido. Mas, veja, nem tudo se perdeu. Apenas como exemplo: existe uma entidade não religiosa, que foi criada em 1863, pelo suíço Henri Durant. Até hoje o grupo se mantém fiel aos seus princípios franciscanos de origem, todos têm direitos iguais e todos têm o dever de ajudar uns aos outros.  E a Cruz Vermelha, uma instituição internacional de ajuda humanitária, tem intencionalmente como seu símbolo visual a imagem da cruz.

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