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Os defuntos do Kassab, por Celso Arnaldo

A realidade brasileira supera a ficção até quando trata de coisas do outro mundo. No romance Incidente em Antares, Erico Verissimo conta o que acontece numa cidade do interior gaúcho depois que uma greve de coveiros impede que os mortos descansem. Embora não sejam muitos, os insepultos não demoram a acabar com o sossego dos […]

Por Augusto Nunes Atualizado em 31 jul 2020, 10h53 - Publicado em 2 set 2011, 21h12

A realidade brasileira supera a ficção até quando trata de coisas do outro mundo. No romance Incidente em Antares, Erico Verissimo conta o que acontece numa cidade do interior gaúcho depois que uma greve de coveiros impede que os mortos descansem. Embora não sejam muitos, os insepultos não demoram a acabar com o sossego dos vivos. Infinitamente menos imaginosos que o grande escritor gaúcho, o prefeito Gilberto Kassab e seus vereadores conseguiram reprisar a trama em proporções surrealistas. Desde terça-feira, São Paulo é Antares em escala amazônica, demonstra mais um texto impecável do jornalista Celso Arnaldo Araújo. (AN)

OS DEFUNTOS DO KASSAB

Celso Arnaldo Araújo

Há três dias, a maior cidade do país é candidata a cenário de um filme de George Romero. Mortos permanecem insepultos por horas, até dias, nas lajes gélidas das salas de óbito de hospitais ou sobre a cama da casa onde viveram seus últimos momentos, resgatando a tradição dos velórios em casa, mas quase sempre agravando a tragédia familiar – enquanto os chamados “funerários”, coveiros e funcionários burocráticos que dão ordem e destino aos defuntos paulistanos, agridem o luto com uma greve de serviço de vida e morte, sanitário, humanitário.

A cidade produz 350 corpos por dia. Noventa anos depois da epidemia de gripe espanhola que gerou uma fila de cadáveres à espera de transporte para saimento e enterro dignos, São Paulo retrocede no tempo e na civilidade, com essa necrose num serviço público absolutamente essencial.

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Nosso impulso – e imagino que os parentes dos mortos insepultos tenham ganas de enterrar com as próprias mãos os coveiros que trocaram o trabalho nos cemitérios por assembleias com dirigentes muito vivos — é acusar os “funerários” de pelegos miseráveis. Mas uma análise mais fria da questão sugere que o buraco é mais embaixo – bem abaixo dos sete palmos da decência humana.

O serviço funerário de São Paulo é municipalizado – posso estar enganado, mas deve ser o único ou um dos raros municípios do Estado em que esse segmento está nas mãos do poder público. Mas o poder público aqui tem cara e nome – e, no caso em pauta, a cara é feia e o nome é um palavrão.

Circula entre os defuntos, à boca pequena, quase fechada, a suspeita de que o Serviço Funerário da cidade de São Paulo é um negócio mafioso controlado por edis que batem ponto no Viaduto Jacareí. A ser verdadeira a presunção, não uma fofoca de quem não tem mais nada a fazer na vida, a corrupção post mortem faz do serviço um dos mais caros e ineficientes do mundo.

Quem já teve a infelicidade de cuidar dos trâmites do enterro de um familiar nos últimos anos desconfia, por experiência dolorosa, que a tal máfia de vivaldinos comanda todas as etapas do processo – da contratação cartorial do enterro em si, superfaturado em todos os seus desdobramentos, aos acessórios do velório. Uma coroa fúnebre de flores murchas e mal arranjadas custa em São Paulo três vezes mais que as corbeilles mais finas produzidas pelos chiquérrimos “flower designers” que decoraram a Abadia de Westminster no casamento de William e Kate Middleton. Até o padre alquebrado, que se oferece à família para uma oração no velório do Araçá quando o corpo está para sair, pertence ao esquema. Nem olha para o morto e, depois de um Padre Nosso atropelado, pede um “auxílio” para as obras da igreja. Faz cara pouco cristã quando o trocado é pouco.

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E nem se mencione, por redundante, o atendimento quase hostil, crudelíssimo para quem acabou de perder um filho ou a mãe – vivos e mortos compartilham democraticamente os maus serviços públicos, com as exceções de praxe.

A mortalha de malandragem que os vereadores paulistanos parecem estender sobre os cemitérios da cidade encobre outro fato que nos mata de vergonha: li hoje que o salário-base da categoria funerária é de R$ 440,39. Somando gratificações e abonos, dá R$ 630 – e isso só depois de uma primeira greve, menos radical que esta. Os donos do luto em São Paulo calaram-se diante desta greve: os vereadores se fazem de mortos, apenas torcendo contra o infortúnio de baterem as botas neste fim de semana. Só ouvi o prefeito Kassab – conclamando os grevistas a retornarem ao serviço, ou “serão substituídos”. Nenhuma palavra sobre a raiz do problema – o serviço é caro, é ruim e os que põem a mão no pó, com esse salário, vivem debaixo do nível da terra de uma existência digna. Locupletam-se, porém, os que só vão a velórios e cemitérios para fazer média, politicalha e elegias fúnebres a aliados e ex-inimigos, na base de “a morte de fulano veio preencher uma enorme lacuna”

Pensando bem: felizes devem estar os mortos que assinaram a lista de filiação do PSD, o novo partido de Kassab. Aprovados os trâmites legais da nova legenda, os escandalosos cadáveres que ressuscitaram ao se apaixonar pelo ideário da nova sigla partidária não foram afetados pela greve e estão enterrados para sempre com a generosa pá de cal da impunidade.

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