Valentina de Botas
Não gosto do indulto que Temer decretou no Natal de 2017, ainda que seja mentira que favorecesse condenados na Lava Jato, pois só havia um condenado com o trânsito em julgado (condição para ser indultado) e mesmo ele não se enquadrava nos critérios do indulto. O indulto que o ministro Roberto Barroso elaborou é melhor do que o de Temer. Pena que não cabe a ministros do STF legislar sobre o indulto – ou sobre qualquer outra coisa –, esta é uma prerrogativa do presidente da República, só dele. Ao dublê de legislador sob a toga vermelha, caberia invalidar todo o indulto, mas não o reescrever: que o devolvesse ao Planalto, o chefe do Executivo elaboraria outro e o juiz de cada caso examinaria. Foi assim que Barroso aprovou sem ressalvas o indulto que Dilma Rousseff concedeu a José Dirceu em 2015 e sem recear que “cidadão de certa elite política e de incontestável poderia econômico, que deste se serve para cometer crimes”, ganhasse a liberdade em “detrimento de cidadãos que sequer (sic) têm como compreender seus direitos”, conforme a discurseira demagógica e oportunista de baixa sociologia proferida ao legislar sobre o indulto que só a Temer caberia legislar. É cinismo, mas tem seu método, como disse mais ou menos Apolônio.
Detesto esculhambação. Na casa, na faculdade ou no trabalho do caro leitor cada um faz o que faz segundo regras, certo? No Brasil não mais: os guardiães da Constituição estão fora da casinha, legislando e governando enquanto customizam a CF. Vale para pegar “bandido”? Então, logo mais valerá para pegar inocentes – o esgarçamento da legalidade justificado para pegar bandido prepara armadilhas para pegar inocentes: é batata! Quem não deve não teme, diz o bordão de sentido fraturado quando o estado de direito democrático se desvitaliza. Além da insegurança jurídica que compromete a recuperação econômica, é preciso lembrar que inocentes só não temerão se a lei for preservada. Que os brutos e demais apressados munidos de indignação mal-informada aplaudam uma coisa dessas, eu compreendo; o que me preocupa, entristece e espanta é o aplauso dos lúcidos. De pessoas de bem que sempre defenderam o estado de direito democrático e, hoje, perdem a luta constante para ver aquilo que têm diante do nariz, como mais ou menos disse George Orwell.
Integro o percentual magro que aprova o governo Temer. Gosto, aliás, da pessoa do presidente, de seu jeitão antiquado, discreto e resiliente. O que não me impede de reconhecer os defeitos de sua gestão. Mas, para meu alívio, sou uma cidadã comum e anônima, cujos gostos e afetos interferem na vida de pessoas que se contam nos dedos das mãos. Já os gostos e afetos de Barroso podem interferir nos destinos de um pouco mais. Como envergonhar-se é uma aptidão que Barroso não tem e que substitui largamente pela imodéstia, o ministro-relator do processo acatou o pedido de quebra do sigilo bancário de Temer, não por que indícios de envolvimento do presidente exigissem a quebra, mas para que a quebra escave indícios até agora inexistentes. Nesta terça-feira, o jornalista Carlos Andreazza fez um comentário contundente, na Jovem Pan, contra a grave esculhambação constitucional e restabeleceu a trilha da civilização, mera picuinha burguesa para os customizadores da CF. Suponho que o eventual leitor seja maior de 12 anos, mas não custa esclarecer: não estou asseverando a inocência de ninguém, estou dizendo que à esculhambação jurídica não importam inocência e culpa. Barroso sabe que é improvável encontrar algum ilícito nas contas de Temer, no mínimo porque é improvável que tenham sido usadas para ilicitudes; o ministro pretende constranger, com a produção de manchetes que ele garantirá mediante o vazamento de informações, o governo de um campo ideológico que rejeita.
O tal decreto dos portos, objeto deste processo por suspeita de favorecimento à Rodrimar, é o 9.048, de 10/05.2017. Pois bem, o texto regula todo o sistema portuário brasileiro e especifica no §3º terceiro do art. 2º que não se aplica a contratos anteriores à Lei 8.630, de 25/02/1993. O detalhe perturbador é que o contrato da Rodrimar é anterior à lei e, portanto, a empresa não se beneficia do decreto porque não é alcançada por ele, mas a suspeita permanece porque Barroso quer! Franz Kafka fez bem melhor, mas muito se esforça para ameaçar a racionalidade o ministro mal-intencionado de militância tóxica. Buscando holofotes (na hipótese benigna), conseguiu tornar-se herói, nestes tempos embrutecidos, um farsante que achou o Direito na rua para jogá-lo no lixo.
Mundo Lula
“Eu não lido, eu simplesmente não me submeto a pressões” (risos?). A incapacidade da ministra Cármen Lúcia em enxergar o Brasil além do mundo Lula, somada ao seu despreparo para o cargo de presidente do STF, a impede de perceber que, não cedendo às pressões para votar a Ação Declaratória de Constitucionalidade que daria uma resposta definitiva e de efeito vinculante sobre a prisão depois de condenação em 2ª instância, ela cede às pressões de não votar. Descumprir a obrigação do STF adiando a resposta institucional definitiva por causa de Lula não mudará o destino da figura mais nefasta da nossa história, mas deixa o país num limbo jurídico. Há outros casos além do de Lula, há vida inteligente além do planeta Lula, há um Brasil farto de Lula e suas implicações.
A Lava Jato completa 4 anos neste mês e, entre as razões para comemorar, seus membros aproveitam a oportunidade para reafirmar que a corrupção é nossa pior mazela, mas (nos) se enganam, pois é o Estado hipertrofiado e ineficiente nossa pior desgraça e matriz da corrupção, pena que os bravos combatentes da corrupção combatam talvez com maior empenho as reformas que o enxugariam. Audaciosa, iluminando as catacumbas dos Poderes Executivo e Legislativo, parte da LJ se revestiu de autoritarismo ao constranger somente as porções do Judiciário e da sociedade que lhe fizeram críticas legítimas. Uma delas: não estaríamos orbitando o mundo Lula se o juiz Sergio Moro houvesse dispensado as tais “medidas menos gravosas” e prendido Lula há 2 anos quando flagrou o criador e a criatura tentando obstruir a LJ na nomeação do jeca para a Casa Civil ou, então, não ter contrariado o próprio despacho da sentença em que o condenou, em maio passado, reconhecendo que a prisão preventiva era cabível, mas ressalvando, numa figura jurídica inexistente, que a prisão de “um ex-presidente não deixa de trazer certos traumas”. Ah, mas o STF o soltaria. Ora, o STF também poderá soltar, com ou sem a votação que Cármen Lúcia adia – e pelo que é parabenizada, meu Deus, que tempos! –, aquele que a LJ não ousou prender (é disto que se trata: a LJ não ousou prender Lula), e outra vez o país é impedido de se enxergar atrás de questões menores do que ele, em que florescem falsos heróis ou salvadores embusteiros e continua orbitando o repugnante umbigo do vilão real cuja alma penada ainda assombra nosso futuro a ser rascunhado nas próximas eleições.
1001 noites
Parece que grandes veículos de comunicação decidiram ficar piores, foi o que fizeram a Globo que dispensou William Waack, o jornal O Globo que abriu mão de Guilherme Fiuza e agora a TV Cultura que não terá mais Augusto Nunes comandando o Roda Viva. “Comandando” é jeito de falar, pois o jornalista hábil fazia parecer que o convidado comandava aquele território livre para que desse seu recado. Fosse o entrevistado de esquerda, direita, centro ou nada disso e tivesse as afinidades que tivesse, o democrata Augusto Nunes, para quem o debate não é um jogo de extermínio ou de convencimento, esteve lá por 1001 segundas-feiras para garantir que o espectador testemunhasse uma conversa das boas. Tomara que o Roda Viva mantenha atmosfera frutífera de cordialidade irreverente. Mas duvido. Para o Augusto, sorte e luz nos novos voos.