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Censura: é verdade esse “bilete” do STF

A censura de vez em quando aparece, aqui e em outros lugares: os censores proibiram Gustav Flaubert, na França, na segunda metade do século XIX

Por Deonísio da Silva
Atualizado em 21 abr 2019, 11h22 - Publicado em 21 abr 2019, 11h22
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    Em agosto do ano passado, em Bocaina (SP), Gabriel Lucca, um menino de seis anos, aluno da professora Paula Renata Robardelli, não queria ir para a escola no dia seguinte e entregou à mãe um pedaço de papel rasgado onde estava escrito: “Senhores Paes, amanhã não vai ter aula porque pode ser feriado. Assinado: Tia Paulinha. É verdade esse bilete”.

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    O menino cometeu apenas dois erros de ortografia, mais do que perdoáveis. Ele estava nos primeiros passos de duas das quatro ações indispensáveis ao ensino de Português: ouvir, falar, ler e escrever. E deu indícios de vocação diplomática: “pode ser feriado”. Talvez não seja…

    O guri (peixe pequenino para os tupis e, por isso, menino) ou o piá (extraído das minha entranhas, para os caingangues, no ponto de vista dos pais) escreveu paes, em vez de pais; e bilete, em vez de bilhete.

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    Esses tropeços devem ser creditados mais às notórias incoerências da grafia da norma culta da língua portuguesa do que a insuficiências do menino. Logo ele aprenderá que a língua falada e a língua escrita têm códigos diferentes.

    Quanto ao “não vai ter aula” em vez de “não vai haver” ou “não haverá”, é mais perdoável ainda: faz tempo que no coloquial o verbo “ter” é usado como substitutivo de “haver”, de “existir” e outros verbos de domínio conexo.

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    Tia Paulinha é o apelido carinhoso da professora, pois, se não era costume designar as professoras dos primeiros anos por “tias”, este tratamento – apenas carinhoso, para alguns; reprovável, para outros – vigora no ambiente escolar há algumas décadas.

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    Esse “bilete” talvez não entre para a História do Brasil. Outros, porém, mais curtos, como os do presidente Jânio Quadros – personagem vulcânico de nossa vida política e o primeiro professor de português a ter chegado à presidência da República — ou um pouco mais longos, como certos despachos de ministros, já entraram.

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    Eles compõem histórias do Brasil duplamente lendárias. E no capítulo da censura há “biletes” hilários, como o despacho que em 1965 mandou prender o autor da peça Electra, que estreava no Teatro Municipal de São Paulo (SP). O autor, o grego Sófocles, morrera no Século V a.C.

    Lenda, do Latim medieval legenda, designa o que deve ser lido, conhecido, como as atuais legendas de fotos e filmes. Em nossa história, antiga ou recente, a censura está repleta de lendas e de coisas que devem ser lidas.

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    Entre outros “biletes” famosos, um deles completa 43 anos. Num ato impulsivo, o ministro da Justiça do Governo de Ernesto Geisel proibiu um livro que se tornou o caso-síntese da luta, por parte de quem escreve ou publica, contra a censura.

    O autor era um dos diretores da Light, é verdade este “bilete”, e está documentado. No dia 14 de dezembro de 1976, a mulher de uma autoridade recebeu de presente de uma amiga o livro Feliz Ano Novo, de Rubem Fonseca, então comercializado num envelope de plástico lacrado junto com um cartão de Boas Festas. Ela leu trechos do conto-título ao marido e este ligou para Armando Falcão, então ministro da Justiça. É o que reza a lenda.

    No dia seguinte, 15/12/1976, o Diário Oficial da União publicava o seguinte despacho do ministro: “Nos termos do parágrafo 8º do artigo 153 da Constituição Federal e artigo 3º do Decreto-Lei nº 1.077, de 26 de janeiro de 1970, proíbo a publicação e circulação, em todo o território nacional, do livro intitulado Feliz Ano Novo, de autoria de Rubem Fonseca, publicado pela Editora Artenova S. A., Rio de Janeiro, bem como determino a apreensão de todos os seus exemplares expostos à venda, por exteriorizarem matéria contrária à moral e aos bons costumes. Comunique-se ao DPF”.

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    Na semana passada, os ministros Dias Toffoli e Alexandre de Moraes, do STF, acrescentaram novas páginas a proibições deste tipo, mostrando, mais uma vez, e certamente não foram os últimos a fazê-lo, que a censura no Brasil é um tiro pela culatra, um ato execrável, predatório e inútil, que contraria os objetivos aos quais se propõe: proibir, calar, vetar, impedir, prejudicar.

    A dupla de ministros proibiu as publicações da revista Crusoé e do site Antagonista retirando-os do ar. De novidades na truculência, somente a tecnologia e os neologismos sites que os hospedam.

    A censura de vez em quando aparece, aqui e em outros lugares: os censores proibiram Gustav Flaubert, na França, na segunda metade do século XIX, levando o autor aos tribunais, ocasião em que o grande escritor, apavorado, recuou covardemente e disse que o propósito de seu romance Madame Bovary era moralizar e educar as moças. Nos EUA, um juiz com mais modéstia do que os dois ministros citados, solicitou parecer literário e liberou Ulisses, de James Joyce, na segunda metade do século XX.

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    Os dois magistrados do STF não consultaram os colegas e nas horas seguintes já sofriam pressões de todos os lados, incluindo a própria trincheira onde atuam para defender a Constituição.

    Celebremos que recuaram, mas eles têm que recuar mais e respeitar os limites da Constituição em vigor para evitar o triste recorde do ministro da Justiça, Armando Falcão, que, em apenas quatro anos, proibiu mais livros do que a Inquisição nos temos monárquicos e do que o famoso Index Librorum Proihibitorum (Índice dos Livros Proibidos) a Igreja Católica.

    Rubem Fonseca recorreu à Justiça. O processo demorou 13 longos anos e, no segundo semestre de 1989, Feliz Ano Novo foi enfim liberado, mas em apertado placar de 2 x 1, no então Tribunal Federal de Recursos (TFR) que virou TRF depois da Constituição de 1988. Numerosas edições piratas já tinham sido feitas por todo o Brasil, talvez até mesmo pelo próprio editor.

    Infelizmente, é verdade esse bilete. E felizmente é também verdade que dos 11 ministros a maioria deles não pensa em censurar a palavra escrita nesses tempos em que ela já está proibida pelo seu principal inimigo, o analfabetismo, que leva o Brasil a ser uma nação de mais de 200 milhões de habitantes, que tem 143 milhões de eleitores, nem todos leitores, dos quais a maioria não entende o que ministros do STF escrevem, mas entende o que escrevem os jornalistas em publicações como a Crusoé e o Antagonista, cujos diretores, os jornalistas Mario Sabino e Rodrigo Rangel, emitiram nota pública na quinta-feira passada agradecendo aos leitores a solidariedade durante os poucos dias que a revista e o site foram mantidos sob censura.

    *Deonísio da Silva
    Diretor do Instituto da Palavra & Professor
    Titular Visitante da Universidade Estácio de Sá
    https://portal.estacio.br/instituto-da-palavra

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