CELSO ARNALDO ARAÚJO
Marco Feliciano tem hoje dois púlpitos: a igreja e a Câmara dos Deputados. Em ambas, é um pastiche de personagem de Nelson Rodrigues: trata-se de um cretino fundamentalista. Mas Infeliciano é suficientemente esperto para, em termos de doutrina, não acreditar nessa baboseira de que Deus empunhou o revólver que fuzilou John Lennon e o manche do avião que derrubou os Mamonas.
É que o modelo de negócios usado por ele e outros pastores evangélicos que fizeram e fazem grandes fortunas em templos eletrônicos é vender o produto “Deus” como um doublé de controller infalível e vingador implacável. No primeiro formato, com um enorme livro-caixa em punho, o sublime criador-criatura dos Felicianos da vida anota, na casa dos centavos, os pagamentos de cada fiel, dia a dia, semana a semana, mês a mês, para recompensá-los, sempre proporcionalmente ao volume e frequência das doações, com empregos dos sonhos, carrões, mansões, redes de lojas e cura para doenças incuráveis. A tungada recebe roupagens afetuosas: “campanha de fé”, “posse da bênção”, etc. E a forma de pagamento é enquadrada nos conformes terrenos: a imbecis que doam seu cartão de débito, ele exige a senha, em nome de Deus – o seu deus sabe e vê tudo sobre tudo e todos, menos uma prosaica senha de quatro dígitos.
Para os hereges inadimplentes ou insuficientes, mesmo que seja por absoluta impossibilidade, e independentemente de fé verdadeira, surge então o vingador cruel ─ garantindo a continuidade do fracasso, da doença e da dor, crianças da família incluídas. O deus de Infeliciano discrimina entre devotos pagantes e não pagantes – à sua imagem e semelhança, e não vice-versa.
Mas o deus miliciano de Infeliciano também arma os Mark Chapman do coração de Manhattan para fazerem justiça “divina” por meio do assassinato de um pacifista e gênio musical que nunca fez mal a uma mosca; e da morte súbita e precoce, num jatinho espatifado na periferia de Guarulhos, de uma banda de jovens que só queriam divertir as pessoas com suas sátiras bobinhas e inofensivas. No processo de vendetta, pune famílias inteiras e a própria humanidade – que com Lennon era muito melhor do que com Infeliciano. Uma curiosidade: qual dos passageiros, a bordo do avião da TAM que caiu ao lado de Congonhas, era o alvo da fúria cega do deus de Infeliciano?
Na verdade, Feliciano está se lixando para o que Lennon disse sobre a popularidade dos Beatles versus a de Cristo. Também não liga a mínima para o suposto escracho dos Mamonas sobre qualquer coisa que evoque os preceitos bíblicos. Apregoando essas baboseiras em sua igreja, seu único interesse, como o pastor que continua sendo, é reforçar a imagem desse deus diabólico, que pune severamente os incréus – para aumentar a eficiência arrecadatória do controlador do livro-caixa celestial. E é bom lembrar que o parlamentar é uma extensão daquele – seu nome oficial de batismo nas urnas é deputado Pastor Marcos Feliciano.
Ambos, por qualquer ângulo, por qualquer crença ou descrença, são cretinos fundamentais e fundamentalistas – o pastor só não enxovalha a Câmara com sua presença como deputado porque ali dentro nada mais há a enxovalhar.
Por fim: o falso pastor religioso que justifica assassinatos e desastres aéreos em nome de Deus e o parlamentar de cabelo esticado que prega racismo e homofobia não merecem uma única palavra em defesa de sua honestidade de propósitos e de seus direitos democráticos. Vá ser humano honesto primeiro.