Carlos Alberto Sardenberg: Volte amanhã, tente de novo
Publicado no Globo CARLOS ALBERTO SARDENBERG Não é coincidência. O sistema tributário brasileiro foi considerado o pior do mundo no relatório “Fazendo negócios” que o Banco Mundial acaba de lançar. Nem bem a gente conseguia estudar o documento, e a Receita correu para justificar o título: impôs ao contribuinte horas de trabalho extra para registrar […]
Publicado no Globo
CARLOS ALBERTO SARDENBERG
Não é coincidência. O sistema tributário brasileiro foi considerado o pior do mundo no relatório “Fazendo negócios” que o Banco Mundial acaba de lançar. Nem bem a gente conseguia estudar o documento, e a Receita correu para justificar o título: impôs ao contribuinte horas de trabalho extra para registrar os empregados domésticos e emitir a guia de pagamento dos impostos.
Foi na mosca. O relatório do Banco Mundial não mede prioritariamente o tamanho da carga tributária, mas se o sistema é amigável ou hostil ao contribuinte. Atenção, ao contribuinte honesto, que deseja manter em dia suas obrigações com o Fisco. Num ranking de 189 países, o Brasil ficou em 177º no quesito facilidade no pagamento de impostos.
Então não foi o último, dirão. Certo. Há 12 países que atormentam ainda mais o seu contribuinte. Entre eles, países africanos, como Nigéria e Senegal, e dois latino-americanos, aliás, nossos parceiros de Mercosul, a Venezuela e a Bolívia, respectivamente no penúltimo e no último lugar. Portanto, nosso comentário acima está correto: o Brasil tem o pior sistema tributário do mundo quando consideradas as nações sérias e relevantes, com todo o respeito.
O documento do Banco Mundial avalia o ambiente de negócios para uma empresa média padrão. O sistema tributário é examinado a partir de dois itens básicos: quantas horas a empresa gasta para manter suas obrigações (2.600 no caso brasileiro) e quantos procedimentos precisa fazer.
Aplicando para a pessoa física, já podemos acrescentar mais horas e procedimentos com esse eSocial.
Não é um episódio pequeno. Na verdade, revela uma cultura de governo, entranhada na burocracia e nas repartições, que trata o contribuinte e o cidadão como se fossem empregados do governo, como se fossem devedores. Quando faz alguma coisa, como uma obra ou presta um serviço decente, o governante sai por aí alardeando que “deu” isso e aquilo para o povo. Por exemplo: “colocamos comida na panela das pessoas”.
Ora, quem coloca comida na panela são os brasileiros que trabalham duro e enfrentam condições difíceis por culpa dos governos. Ou é culpa do cidadão demorar duas horas para chegar ao trabalho e outras duas para voltar? Vai ver que não conhece as linhas de ônibus…
No episódio do eSocial, logo de cara ficou claro que o sistema não funcionava direito. Resposta das autoridades aos contribuintes: continuem tentando; tentem fora do horário de pico.
E não é que muitos ficaram acordados até tarde ou acordaram de madrugada? E ficaram felizes quando conseguiram emitir a guia para cumprir a obrigação.
É costume. Desânimo também. Tantos anos sendo maltratado, e o cidadão-contribuinte como que perdeu a esperança e o ânimo de reclamar. Vai pacificamente para a fila do hospital, espera no INSS, fica horas na frente do computador tentando emitir a tal guia. Quando é atendido agradece. Claro, deve mesmo, por educação, ser gentil e agradecer ao funcionário, mas, gente, é este que está ali cumprindo sua obrigação.
A repartição tem de ser amigável com o cidadão. O funcionário é empregado do cidadão. Se o serviço público não funciona, não se pode passar a responsabilidade para as pessoas, como fazem: Volte amanhã. Tente de novo. Você precisa de melhores computadores.
Do lado lá deles, por vários dias, ninguém pediu desculpas, ninguém se demitiu, ninguém caiu pelos erros ou omissões. E ainda ameaçaram: o prazo não seria prorrogado. Não emitiu a guia, toma multa.