As mudanças climáticas vão alterar a qualidade do vinho que tomamos?
Era das temperaturas extremas mexe com o tabuleiro da geografia das regiões produtoras da bebida. Certamente alguns ajustes na bebida terão que ser feitos
Eventos climáticos extremos são uma realidade. Os verões incandescentes do Hemisfério Norte, ou as chuvas que colocam estados debaixo d’água ao sul do Brasil têm transformado a realidade das regiões e também irão provocar mudanças profundas na produção de vinhos e, por consequência, na maneira que apreciamos a bebida. “Certamente haverá restrições de cultivo em regiões tidas tradicionais, como na França e Itália, que sofrem com o impacto da falta de água”, explicou à coluna Al Vino o especialista Henrique Pessoa dos Santos, que é pesquisador de fisiologia de produção da Embrapa – Uva e Vinho. Isso não quer dizer que tais regiões serão extintas, mas que a maneira de se fazer vinho deverá ser modificada e produtos famosos podem receber “atualizações”, por exemplo. “Colheitas passarão a ser feitas antes ou blends serão mais necessários”, completou Santos.
Outra característica observada com essas mudanças é que elas são migratórias, ou seja, elas se movem e influenciam outras regiões. Enquanto umas enfrentarão dificuldades, outras poderão colher benefícios. A Inglaterra está no time das regiões que podem se dar bem. Antes conhecido pela neblina e pelo clima frio e muito úmido, o país é a esperada bola da vez como nova região de excelência para o cultivo de uvas. Segundo o pesquisador da Embrapa, muitos investimentos nesse sentido já têm sido feitos esperando os próximos anos de clima mais seco e amplitude térmica alta, que protegem e permitem a maturação perfeita das uvas. Assim, os britânicos têm tudo para fazer num futuro próximo um novo brinde: God save the grape!
Aqui no Brasil, a falta de chuva nos últimos três anos na região Sul estava sendo festejada pelos viniviticultores. “É preciso 450 a 500mm de chuva para que a videira feche um ciclo desde que começa a brotar a colheita. Nossa média é de 1500mm ao ano, ou seja, sempre sobra chuva, o que aumenta a presença de fungos. A falta de sol também diminui a fixação dos pigmentos e por fim a falta de amplitude diminui a quantidade de acidez, que é muito importante para qualidade do vinho”, conta Santos, da Embrapa. Ocorre que o período de seca foi sucedido pela passagem do último ciclone. Para se ter uma ideia, em uma única chuva foram despejados dos céus 170 mm.
Não há ainda uma contabilidade precisa dentro das vinícolas, mas o fenômeno certamente afetou pequenas propriedades próximas às beiras de rio, mas não os grandes vinhedos que estão começando a brotar para a colheita de Chardonnay e Pinot Noir, que deve ser realizada em janeiro de 2024. No caso dos bons espumantes produzidos naquela área, cuja colheita é feita com a uva mais verde, de forma a preservar mais acidez, o que garante o frescor deste tipo de vinho, as chuvas não causarão grandes mudanças. Já para os tranquilos, como se denominam os tintos tradicionais, deve haver alguma alteração no padrão quanto ao nível de acidez e pigmento. O que certamente deverá ser corrigido com produtos enológicos, já que a fruta não trouxe tais características, ou serão necessárias adaptações no produto.
Uma das uvas que consegue manter bom nível de acidez, mesmo em locais de noites menos frias, sem grande amplitude térmica, é a Syrah. Por isso, ela é a mais plantada pelo sistema de poda de inverno, ou dupla poda, em regiões como Serra da Mantiqueira, em SP, Minas Gerais e até Goiás. Deverá ser essa cepa francesa a queridinha desses lugares.
Agora, as grandes vinícolas do Sul, que em meados desse ano anunciaram aos quatro ventos que iniciaria uma produção mais “orgânica”, contando com a estabilidade de “La Niña”, faltou mesmo combinar com “a menina”. “Me parece que esses planos deverão ficar para depois, não há como fugir de cuidar das vinhas para se evitar fungos e fazer controle sanitário sem remédios”, afirma o especialista da Embrapa.