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“Uma rede de cérebros seria capaz de realizar tarefas que um computador normal não faria”

Em entrevista ao site de VEJA, o neurocientista brasileiro Miguel Nicolelis fala sobre as possibilidades criadas pela pesquisa na qual sua equipe conseguiu conectar remotamente os neurônios de dois ratos

Por Guilherme Rosa
Atualizado em 6 Maio 2016, 16h22 - Publicado em 28 fev 2013, 13h22

Nesta quinta-feira, o neurocientista Miguel Nicolelis lançou sua mais nova pesquisa na revista Scientific Reports. Desta vez, o brasileiro demonstrou a possibilidade de transmitir informações entre os cérebros de dois ratos. Após ter instalado eletrodos na cabeça dos animais, a equipe liderada pelo pesquisador conseguiu transmitir os sinais elétricos gerados pelos neurônios de um dos cérebros para o outro, fazendo os ratos agirem em colaboração – mesmo quando separados por um continente.

Essa pesquisa foi realizada ao mesmo tempo, e publicada duas semanas depois de outra que estudava a capacidade de ratos sentirem a luz infravermelha. Por meio de sensores infravermelhos instalados na cabeça do animal e eletrodos ligados ao seu córtex tátil, os pesquisadores conseguiram criar um novo sentido. Segundo Miguel Nicolelis, as duas pesquisas tinham como objetivo medir os limites da plasticidade cerebral, a capacidade de o cérebro se adaptar a novos estímulos e interpretar sinais que nunca havia recebido antes. Ambas obtiveram sucesso em sua empreitada. Em entrevista ao site de VEJA, Nicolelis falou um pouco mais sobre o estudo e suas consequências, como a criação de uma rede mundial de cérebros – a brainet.

Até agora, o senhor vinha realizando uma série de pesquisas sobre as interfaces cérebro-máquina. Onde esta pesquisa sobre a interface cérebro-cérebro se insere em seus estudos? Ela é uma progressão natural das pesquisas anteriores. Em nossos laboratórios, nós buscamos descobrir os limites do cérebro, queremos descobrir até onde podemos levar o órgão a incorporar novos sensores. Já fizemos ele se comunicar com máquinas, com avatares em computador e até com sensores de luz infravermelha. Desta vez, nós tentamos descobrir se o cérebro é capaz de assimilar os sentidos de outro corpo. Essa pesquisa surgiu no mesmo período do estudo que permitiu aos ratos sentirem a luz infravermelha – elas caminharam juntas. O objetivo de ambas era estudar quais os limites da plasticidade cerebral cortical. Nossa ideia era publicar as duas pesquisas juntas, mas os editores de revista Nature recomendaram que dividíssemos as descobertas em dois trabalhos. Um foi publicado na revista Nature Communications e o outro na revista Scientific Reports.

A ideia de realizar uma interface cérebro-cérebro é nova? Eu propus publicamente essa nova interface em meu livro, Muito Além do Nosso Eu (Cia. das Letras), publicado em 2011. Mas eu já tinha proposto isso em nossos laboratórios em 2006, e fomos examinando essa possibilidade com o decorrer do tempo. Como resultado do estudo, descobrimos que o cérebro do segundo rato, o decodificador, começou a representar não só os próprios bigodes, mas também os bigodes do outro animal. Nós criamos a representação de um outro corpo em seu cérebro, o que foi totalmente inesperado. Isso demonstrou o tamanho da plasticidade cerebral, capaz de assimilar os sentidos de outro animal e se comunicar usando apenas a atividade elétrica produzida em seu interior.

Esses sinais elétricos são sempre transmitidos entre os animais da mesma forma? Não, uma série de fatores na atividade neuronal pode afetar a clareza da transmissão da informação. A atenção – ou distração – com que o animal realiza a atividade afeta a qualidade da transmissão. A precisão com que realiza os movimentos também. Existe uma variabilidade biológica na transmissão desses sinais.

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No estudo, o senhor diz que os animas foram capazes de perceber isso, e melhoraram a clareza da transmissão. Como isso foi possível? O primeiro animal não recebia sua recompensa completa a menos que o segundo realizasse sua tarefa de forma correta. O codificador não gostava quando o outro rato apertava a alavanca errada – ele queria a recompensa. Por isso, nas tentativas seguintes ele mudava seu comportamento: prestava mais atenção na tarefa, usava movimentos mais precisos e, assim, seus sinais cerebrais ficavam mais claros. O comportamento de um animal influenciava o outro, eles estavam se comunicando. Seus cérebros se sincronizavam para realizar a tarefa.

Mas o rato tinha como saber que estava se comunicando com outro animal? Nesse caso, o codificador não sabia que existia outro rato. Ele só sabia que queria ganhar sua recompensa, e aprendeu que se fizesse a tarefa bem feita, a recompensa vinha. Eles estavam se comunicando indiretamente, mas influenciando diretamente o comportamento um do outro. Nesse momento, estamos realizando experimentos com dois macacos, que estão aprendendo a controlar avatares em um mundo virtual. Eles vêm um ao outro na tela, e sabem que existe outro animal no ambiente. Nossa intenção é que eles aprendam a usar uma interface cérebro-cérebro para trocar informações e realizar tarefas nesse mundo virtual.

E como isso pode levar ao desenvolvimento de um computador orgânico? A minha ideia é colocar mais ratos, ou macacos, interagindo por meio dessa rede que criamos. Se tivermos sucesso ao fazer isso, podemos criar um sistema computacional com uma arquitetura orgânica, formado por múltiplos cérebros – eu chamo essa ideia de brainet. Teoricamente, uma rede de cérebros seria capaz de realizar tarefas que um computador normal não faria muito bem. Eu quero ver, por exemplo, se um cérebro pode estocar informações de uma maneira distribuída de maneira que um rato só não tenha toda a informação, mas a rede inteira estoca a informação. Essa rede de cérebros seria capaz de realizar computações sem depender de uma base pré-determinada de instruções – os algoritmos. Foi isso que eu falei no Encontro Anual da Associação Americana para o Avanço da Ciência, em Boston, e causou tanta repercussão.

[Durante o encontro, Nicolelis disse que não é possível transformar a atividade do cérebro em uma série de algoritmos, e nenhum engenheiro é capaz de reproduzi-lo em um computador. Essa previsão contradiz as teorias de uma série de cientistas, como o futurista Ray Kurzweil, que previam que, no futuro, os computadores estariam tão avançados que sua inteligência artificial superaria a humana e seria possível fazer o upload de pensamentos, memórias e consciências nessas máquinas. O momento exato em que isso aconteceria ficou conhecido como Singularidade. Em sua fala, Nicolelis disse que esse momento nunca irá chegar, pois a consciência é fruto da interação imprevisível e não-linear entre bilhões de células.]

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Sua declaração atacando a Singularidade causou comoção na comunidade científica. O senhor esperava por isso? Não sei se a comoção foi tão grande. Os neurocientistas gostaram muito do que falei, porque sabem que isso é verdade. O pessoal da ciências da computação e da inteligência artificial é que pareceu ficar preocupado, pois alguém começou a falar contra essa ideia. A Singularidade começou a ser vendida como se fosse apenas questão de tempo, uma verdade inexorável. Mas nós, neurocientistas, sabemos que isso não vai acontecer nunca.

Por enquanto, as informações que vocês trocaram entre os cérebros foram muito simples. Como será possível chegar ao nível necessário para criar a brainet? Em nossa pesquisa medimos cerca de 50 neurônios. Nós temos que aumentar muito a complexidade do sinal transmitido entre os cérebros. Mas é difícil fazer isso com os ratos. Teríamos que usar mais eletrodos. Em nossa pesquisa com macacos já estamos usando dezenas e até centenas de eletrodos.

Seria possível usar essa rede para transmitir pensamentos e memórias? Ainda não sabemos, não temos nenhuma evidência para falar isso. Mesmo assim, eu ouso dizer que, muito no futuro, eventualmente seremos capazes de fazer isso.

Qual foi o papel do Instituto Internacional de Neurociências de Natal nessa pesquisa? Ele teve um papel muito importante. No estudo que transmitiu os sinais pela internet entre Estados Unidos e Brasil, os registros da atividade cerebral dos ratos codificadores foi realizada em Natal. A nossa pesquisadora, Carolina Kunicki, foi responsável por criar e treinar esses ratos codificadores. Além disso, toda a tecnologia de implantes cerebrais, de estimulação do córtex, foi transferida para lá. A pesquisa terá repercussão mundial. O que mais podemos pedir? Que outros instituto brasileiro terá seu trabalho coberto por toda a imprensa mundial? Isso é extremamente raro. Esse é apenas o começo de uma série de trabalhos que vão começar a ser publicados – ninguém faz ciência do dia para a noite. Um deles, feito inteiramente no Instituto, é sobre a doença de Parkinson, demonstrando a viabilidade de uma técnica de estimulação medular em macacos.

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O senhor começa seu estudo citando uma frase do engenheiro Ralph Hartley sobre a transmissão de informações entre organismos biológicos: “em qualquer comunicação, aquele que envia a informação seleciona mentalmente um símbolo particular e, por meio de algum tipo de movimento corporal, como os mecanismos vocais, faz com que o destinatário seja dirigido para esse símbolo particular”. O que essa citação tem a ver com sua pesquisa? Na realidade, nós criamos uma forma de comunicação completamente inédita, em qualquer espécie. Ninguém sabe como esse tipo de interface pode acontecer, que símbolos podem ser usados. Nós estamos criando um novo tipo de interface, que ninguém sabe onde poderá nos levar. Daqui a décadas, ou até uma centena de anos, com a criação de técnicas não invasivas para ler os sinais do cérebro, nós poderemos ver até seres humanos se comunicando por meio disso. Qual a simbologia que será usada? Não sabemos. Eles serão criados na medida em que formos desenvolvendo a tecnologia. Eu achei a citação completamente apropriada.

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