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Um norueguês contra a história

Depois de seis décadas, história da Expedição Kon-Tiki, que tentou contestar teorias sobre colonização da Polinésia, volta às telas dos cinemas

Por Paola Bello
Atualizado em 6 Maio 2016, 16h18 - Publicado em 13 ago 2013, 15h40

Quando o pesquisador norueguês Thor Heyerdahl (1914-2002) lançou ao mar, em 28 de abril de 1947, uma jangada inspirada em embarcações primitivas, poucos acreditaram que as cordas que mantinham suas tábuas unidas seriam suficientemente fortes para conduzir com segurança seus seis tripulantes e um papagaio por mais 8.000 quilômetros mar adentro. Para Heyerdahl, muito além de um atestado de perseverança, os 101 dias de expedição entre a costa do Peru e o Taiti seriam uma prova irrefutável de sua teoria de que teriam sido os pré-incas, e não os asiáticos, os colonizadores das ilhas da Polinésia.

Da experiência de Heyerdahl há mais de seis décadas nasceu um livro, escrito pelo próprio navegador. A expedição Kon-Tiki (José Olympio Editora, 280 pg.) foi traduzida para mais de 70 idiomas e superou a marca de 50 milhões de exemplares vendidos. A expedição também gerou um documentário, filmado por Heyerdahl e seus cinco companheiros de viagem, vencedor do Oscar em 1950. Em 2013, a primeira experiência de Heyerdahl na busca por comprovações práticas de suas teorias ganhou novamente os holofotes com uma nova versão para o cinema, que reconstitui com atores a incrível viagem pelo Oceano Pacífico. Indicado desta vez ao Oscar de melhor filme estrangeiro, Expedição Kon Tiki perdeu o prêmio, mas o filme, que estreou nos cinemas brasileiros na última semana, consegue retratar a ousadia de um pesquisador cuja motivação era questionar as teorias já reconhecidas pela comunidade científica.

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A expedição Kon-Tiki

A bordo de uma jangada, o cientista Thor Heyerdahl tentou provar sua tese sobre a colonização da Polinésia. Neste livro, ele conta como conseguiu sair do Peru e viajar 8.000 quilômetros em 101 dias rumo a uma nova teoria.

Autor: HEYERDAHL, THOR

Editora: JOSÉ OLYMPIO

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As evidências do norueguês – Embora as teorias que tratam da colonização da Polinésia apontem para diferentes origens, todas defendem que os desbravadores do conjunto de ilhas saíram de algum lugar da Ásia. A tese de Heyerdahl surgiu dez anos antes da expedição Kon-Tiki, quando o pesquisador passava a lua de mel na ilha de Fatuhiva, no Pacífico. Da viagem exótica resultaram alguns vidros com insetos para estudos e a decisão de trocar a biologia pela arqueologia. Depois de um ano passado na ilha, não restavam dúvidas à Heyerdahl: as similaridades arqueológicas, linguísticas e até físicas dos habitantes do Pacífico com os sulamericanos não podiam ser mera coincidência.

A região da Polinésia é formada por um conjunto de ilhas no Pacífico que vai do Havaí, ao norte, à Nova Zelândia, no sul, e de Samoa, no Oeste, à Ilha de Páscoa, no Leste. As primeiras habitações na região são datadas do ano 500, e há evidências de que uma segunda leva de migrantes chegou à Polinésia por volta de 1.100, antes dos navegadores europeus. Essas levas de desbravadores geraram questionamentos quanto à origem, e foram elas que inspiraram o norueguês Heyerdahl a apostar que os ameríndios descobriram a rota para lá muito antes dos asiáticos.

Uma das provas arqueológicas usadas por Heyerdahl é que estes colonizadores ainda utilizavam artefatos primitivos, feitos de pedra lascada, bastante diferente das ferramentas encontradas na época no Velho Mundo. “Apesar da inteligência e da assombrosa cultura, esses navegantes trouxeram consigo um tipo de machado de pedra e vários outros instrumentos característicos desse período, e os espalharam por todas as ilhas em que se estabeleceram”, afirma Heyerdahl em seu livro. “Não havia civilização alguma no mundo que ainda estivesse no nível da Idade da Pedra nos anos 500 ou 1100 da nossa era, exceto no Novo Mundo”, completa.

Outra evidência utilizada em sua teoria constava nas similaridades entre as esculturas e as construções em pedra encontradas na Polinésia e no extinto Império Inca. “Ali (no Peru) vivera um povo desconhecido que havia fundado uma das mais estranhas civilizações do mundo, até que, subitamente, esse povo desapareceu, como que varrido da face da Terra. Deixou enormes estátuas de pedra semelhantes a seres humanos, que faziam lembrar as de Pitcairn, as das ilhas Marquesas e de Páscoa, e imensas pirâmides construídas em degraus como as do Taiti e de Samoa”, descreve Heyerdahl.

Há registros que mostram que, nas ilhas da Polinésia, eram cultivadas algumas plantas típicas da América do Sul, como a batata doce e a cabaça. Por outro lado, ossos encontrados em sítios arqueológicos nos antigos impérios sulamericanos provam a presença de galinhas domesticadas, originárias da Polinésia, antes das grandes navegações. Para Heyerdahl, eram mais do que coincidências.

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A prova final veio quando ele ouviu, já no final de sua lua de mel, a lenda do deus tribal polinésio Tiki, e viu nela incrível semelhança com as crenças ameríndias. O rei-sol, venerado pelos incas peruanos, chamava-se Virakocha, mas também era chamado de Kon-Tiki ou Illa-Tiki, que significa Sol-Tiki ou Fogo-Tiki. Ele era o sacerdote que os “homens brancos” citados pelos incas veneravam, e ao qual foram dedicadas as atuais ruinas nas margens do lago Titicaca. Neste local, acreditava-se que os homens brancos foram atacados por outros povos e trucidados, mas Kon-Tiki e seus companheiros mais próximos conseguiram fugir pelo Oceano Pacífico. “Eu já não tinha dúvida de que o deus-chefe branco Sol-Tiki que, segundo os incas, havia sido expulso do Peru para o Pacífico pelos pais destes, era idêntico ao deus-chefe branco Tiki, filho do sol, a quem os habitantes de todas as ilhas orientais do Pacífico reconheciam como o primitivo fundador da raça”, declara em seu livro. E, em homenagem a este deus, cuja lenda comprovaria sua teoria, Heyerdahl batizou seu barco e sua expedição de Kon-Tiki.

Cientista à bordo – O norueguês tinha a teoria, mas lhe faltavam provas. Depois de ter sido recusada por todas as publicações científicas que procurou, a tese, escrita ao longo de dez anos, tendia ao esquecimento. Foi então que Heyerdahl resolveu, ele mesmo, confirmar sua tese. Em um mês, viajou para o Peru, recrutou cinco aventureiros, e juntos construíram uma jangada de pau-de-balsa, madeira típica da região. “Nem um único prego, cavilha ou cabo de arame foi usado em toda a construção”, afirma em seu relato.

Sobre os nove troncos amarrados com corda artesanal, foi posta uma cobertura de taquaras, amarradas à jangada e cobertas com esteiras soltas de bambu trançado. “No meio da jangada, mais perto da popa, erguemos uma pequena cabana de bambu com paredes também de bambu e telhado de lascas de bambu, com folhas de bananeira encaixadas umas nas outras, como telhas”, descreve em seu livro.

E foi nesta embarcação, réplica fiel das jangadas usadas havia mais de 1.000 anos na região do Peru, que Heyerdahl e sua equipe deixaram, no dia 28 de abril de 1947, o porto de Callao. Na embarcação, não existiam remos nem motores, apenas uma vela. A intenção era provar que, se a jangada seguisse à deriva, levada pelo vento e pelas correntes marítimas, os seis chegariam à Polinésia. E chegaram. Depois de 101 dias e 8.000 quilômetros navegados, atracaram nos recifes de corais de Raroia, no Taiti. A possibilidade do caminho pelo mar estava provada. A certeza da colonização sul-americana da Polinésia, ainda não.

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THOR HEYERDAHL

Nascido em 1914, em Larvik, na Noruega, Thor Heyerdahl começou a estudar Geografia e Biologia na Universidade de Oslo em 1933. Em 1937, fez sua primeira viagem à Polinésia, onde morou, por um ano, como nativo na ilha de Fatuhiva, no arquipélago de Marquesas. Foi neste período que começou a desenvolver sua teoria de que a colonização da Polinésia poderia ter sido feita por ameríndios, em especial devido às similaridades arqueológicas e às correntes favoráveis do mar e dos ventos. A expedição Kon-Tiki foi a primeira de suas aventuras. Realizada em 1947, levou 101 dias e 8.000 para ser finalizada. Desta jornada, foi publicado um livro e lançado um documentário em vídeo, vencedor do Oscar de melhor documentário em 1951. No ano seguinte, Heyerdahl organizou a primeira expedição arqueológica para Galápagos e, entre 1955 e 1956, esteve à frente das primeiras escavações arqueológicas na Ilha de Páscoa. Entre 1969 e 1970, cruzou o Oceano Atlântico a bordo de um barco de papiro e, em 1978, sua expedição Tigris cruzou o Índico em uma embarcação de junco. Morreu em 2002, aos 87 anos, de câncer no cérebro.

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Fonte: The Kon-Tiki Museum

Contestações – Ao mesmo tempo em que a empreitada de Heyerdahl e seus cinco companheiros de viagem chamou a atenção para outras hipóteses de povoamento da Polinésia, as teorias tradicionais de colonização por asiáticos ganharam fortes aliados. “Nos últimos 30 anos, em especial, vemos uma explosão de novos dados relacionados à arqueologia, linguística e bioantropologia, com interpretações sobre as antigas questões de quando e como os povos entraram no Pacífico e conseguiram descobrir e colonizar praticamente cada uma de suas centenas de ilhas”, afirma o professor de antropologia e diretor do Laboratório de Arqueologia Oceânica da Universidade da Califórnia em Berkeley, Patrick Kirch, em seu artigo Peopling of the Pacific: A Holistic Anthropological Perspective.

Nascido no Havaí, Kirch dedicou grande parte de sua carreira ao estudo dos indícios históricos e arqueológicos da Polinésia, buscando a integração com registros linguísticos e bioantropológicos. Segundo ele, uma das evidências de estudo mais consideráveis é a presença de uma série de objetos cerâmicos chamados de Lapita, encontrados na região entre Nova Guiné e Bismarck. Embora existam estudos que sugerem que a Lapita tenha sido desenvolvida localmente, há vários indícios que apontam que ela foi introduzida na região a partir da Ásia.

Algumas das teorias defendidas por Kirch batem de frente com o que foi proposto por Heyerdahl. Enquanto o norueguês defendia como evidências da colonização sul-americana a existência de batata doce e babaça na Polinésia, o havaiano defende o oposto. “A maioria dos arqueólogos nunca levou as ideias de Heyerdahl à sério sobre a chegada nos ameríndios ao Pacífico nos tempos pré-Colombo. Entretanto, a proposição reversa – que os polinésios navegaram para as costas da América do Sul, fazendo contato com as populações de lá – parecem cada vez mais prováveis, e têm provocado debates recentes”, defende Kirch em seu artigo.

A batata doce, por exemplo, era cultivada em grandes quantidades na parte leste da Polinésia, em especial na Nova Zelândia, Havaí e Ilha de Páscoa, antes dos primeiros contatos com os europeus. “É inteiramente plausível que ao menos uma viagem de canoa rumo à América do Sul conseguiu estabelecer contato e retornar com tubérculos de batata doce, que acabou entrando no complexo de horticultura da Polinésia”, defende Kirch. “O nome polinésio para batata doce, kuumara, é, quase sem dúvida, um empréstimo de algum dialeto sulamericano onde o termo para a plantação é kumar ou alguma variante similar”, completa. Para ele, a cabaça, presente nas Américas há mais de 9.900 anos, seguiu o mesmo rumo.

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A presença da galinha na América do Sul antes de Colombo, para Kirch, é outra evidência das navegações polinésias. “Há registros de ossos de galinha na região do El Arenal, na parte sul do Chile, uma evidência do contato dos polinésios e introdução da (espécie) G. gallus”, ressalta. “A data reportada, estimada entre 1321 e 1407, coincidiria com o fim do período extensivo de viagem dos polinésios, mas certamente é anterior à ocupação espanhola.”

Questionamento genéticos – Para além das evidências arqueológicas, Kirch e sua equipe também recorreram à genética para tentar colocar um ponto final nesta discussão. Segundo Kirch, uma das principais descobertas neste campo é que tanto polinésios quanto ilhéus do sudeste asiático compartilham uma característica bastante incomum: deleção de nove pares de base no DNA mitocondrial. Esta descoberta reforça a teoria de colonização da região a partir da porção sudeste da Ásia.

Mesmo com esta evidência, os noruegueses não se renderam facilmente. Outro pesquisador se dispôs a aprofundar os estudos do conterrâneo Heyerdahl. Desde 1971, o imunologista Erik Thorsby busca compreender de onde, afinal, surgiram os polinésios. Suas investigações, como se pode prever, começaram pelos escritos de Heyerdahl.

“Meu interesse começou quando li alguns trabalhos de Thor Heyerdahl e combinei com meu conhecimento, como imunologista, sobre o complexo HLA (Human Leukocyte Antigens – em português, Antígenos de Histocompatibilidade Humano), um complexo de genes que se tornaram uma importante ferramenta de investigação antropológica”, explicou o pesquisador em entrevista ao site de VEJA.

Sem ter a resposta para seus questionamentos, Thosrby e sua equipe retornaram à investigação das mesmas amostras em 2006, já com recursos e equipamentos mais desenvolvidos. E só então começaram a ter resultados satisfatórios. “Estas investigações de genética molecular demonstraram, pela primeira vez, alguns traços genéticos antigos de ameríndios em habitantes da Ilha de Páscoa. Não conseguimos estabelecer de onde eles vieram primeiro, exceto que os resultados promoveram evidências muito fortes de que deve ter ocorrido antes dos comércios de escravos peruanos em 1860”, comemora.

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As investigações de Thorsby também sugerem, mas não provam, que a época da chegada dos ameríndios na Polinésia aconteceu antes do descobrimento da região pelos europeus, em 1722, mas que também foram depois que as ilhas estavam habitadas. “Atualmente, acredito que os primeiros habitantes da Polinésia vieram do oeste, por exemplo, do leste da Ásia”, afirma. “Os resultados de nossas investigações são completamente compatíveis e suportam esta ideia. Se foram ou não sul-americanos os primeiros a chegar lá, ainda é cedo para concluir”, completa.

A conclusão certeira pode ser alcançada em breve. “Para responder com mais exatidão quão cedo os ameríndios chegaram à Polinésia, precisamos investigar o DNA de antigos ossos na região. Já estamos fazendo estas investigações, mas os resultados não estarão disponíveis antes do final deste ano”, afirma Thorsby.

De uma coisa, o segundo norueguês não tem dúvida: Heyerdahl pode ter errado, mas não completamente. “Sua teoria, mesmo que muito controversa, levou a um enorme interesse na área. Sem Heyerdahl, (a investigação das origens dos polinésios) poderia nunca ter começado, ou começado muito mais tarde”, destaca. “Entre suas maiores contribuições está ter mostrado ao mundo que os oceanos nunca foram barreiras, mas caminhos.”

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