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Tragédia do Titan amplia um incômodo: sabe-se muito pouco dos oceanos

Sabemos mais do espaço acima de nossas cabeças, de astronautas e estrelas, do que do mar debaixo de nossos pés, de mergulhadores e tubarões

Por Luiz Paulo Souza Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO Atualizado em 30 jun 2023, 10h34 - Publicado em 30 jun 2023, 06h00

O mundo parou, na semana passada — entre o fascínio e alguma morbidez —, para acompanhar as desventuras do submersível Titan e seus cinco tripulantes, bilionários ávidos por chegar perto dos destroços do Titanic, a 3 800 metros de profundidade, na costa do Canadá. A tragédia, resultado da implosão da cápsula de fibra de carbono do tamanho de uma van média, matou os cinco tripulantes. E a história se repetiu como farsa em torno do mítico navio que em 15 de abril de 1912 colidiu com um iceberg e afundou. O desastre — atalho para capas de jornais, reportagens especiais na televisão e memes, em um fio a se desenrolar pelo planeta — alimentou o drama secular e iluminou um enigma em forma de indagação: afinal, quanto conhecemos dos oceanos? Ou, posto de outro modo: sabemos mais do espaço acima de nossas cabeças, de astronautas e estrelas, do que do mar debaixo de nossos pés, de mergulhadores e tubarões?

A estatística é nítida: pouco mais de 23% dos mares já foram explorados pelo ser humano. Cerca de 240 000 espécies marítimas são conhecidas, mas um censo divulgado no ano passado estima haver pelo menos 2 milhões incógnitas. Pesquisadores e cientistas costumam fazer uma comparação em forma de boutade — desde sempre, mais precisamente desde 1969, doze pessoas puseram os pés em solo lunar e, na soma total de tempo, caminharam nas pedras cinzentas, roubando-a dos namorados, um total de 300 horas. No ponto oposto, o fundo do mar mais profundo, a chamada Depressão Challenger — a 10 900 metros da superfície — foi tocada por apenas três indivíduos, que ali permaneceram durante pouco mais de três horas de exploração, embora outros 24, entre eles o cineasta James Cameron, o diretor de Titanic, tenham roçado a região (veja no quadro). Um oceanógrafo da Nasa — sim, essa atividade existe —, Gene Feldman, cunhou uma frase categórica: “Temos mapas mais completos da Lua e de Marte do que do nosso planeta”, disse. Ainda assim, seria exagerado assegurar conhecermos mais o cosmo do que os oceanos, mais o infinito do que o finito.

arte fundo do mar

Contudo, é sempre bom lembrar que 90% de todo o volume de água salgada está nas áreas profundas, onde a luz não chega, a temperatura não passa dos 4 graus e a pressão é insustentável. Não por acaso, dada a imprevisibilidade, os aventureiros do Titan tiveram de assinar um termo de consentimento apontando os riscos, sobretudo o de morte, isso depois de terem desembolsado algo próximo de 250 000 dólares ou o equivalente a 1,2 milhão de reais cada um. O turismo espacial, que começa a decolar, e que apenas em 2024 ganhará real tração, pondo mais gente de carne e osso em órbita, exigirá cautela similar — mas o cuidado, por ora, é maior do que nas estripulias aquáticas.

EXTREMOS - Kathy Sullivan: ela foi ao espaço e depois mergulhou ao ponto mais baixo de que se tem notícia
EXTREMOS - Kathy Sullivan: ela foi ao espaço e depois mergulhou ao ponto mais baixo de que se tem notícia (NASA/Arquivo pessoal)

O charme da obscuridade, da treva debaixo d’água, é atávico ímã da civilização, tal qual o olhar para a cima. No caso das jornadas pelo éter, contudo, houve alguma sensação de conquista com a chegada do homem à Lua — embora, é claro, exista o infinito e o além, e sejamos um pontinho em meio ao nada à espera do ansioso encontro com alguém como nós lá fora. Físicos geniais como Albert Einstein e Stephen Hawking fizeram perguntas — sem respostas exatas — em torno do big bang, da origem de tudo, da formação de planetas, em um edifício intelectual belo e forte. O mar, contudo, ainda é povoado de mitologias intocadas que atravessaram os séculos em ilustrações e relatos mágicos como o da cidade perdida de Atlântida, uma ilha lendária povoada por uma civilização antiga que teria desaparecido catastroficamente e, mais tarde, causa de inúmeros naufrágios ao redor do mundo. O estudo dos oceanos pede novos capítulos. O interesse pelos vestígios do Titanic submergido persiste, como aventura, por revelar algo concreto. A atual investigação pelos restos de um barco de 3 000 anos completamente costurado a mão encontrado, em 2008, no condado de Istria, na Croácia, e que, em algumas semanas pode vir à tona, faz parte da mesma família de entusiasmo.

IMAGINAÇÃO - Século XIX: mitos
IMAGINAÇÃO - Século XIX: mitos (Universal History Archive/Getty Images)

Uma única pessoa, na face da Terra, ajuda a traduzir o deslumbramento de medir mar e espaço, as forças e as fraquezas de um e outro. A americana Kathy Sullivan, que chegou a ser alcunhada de “a mulher mais vertical do mundo”, esteve nos dois extremos. Em outubro de 1984, como astronauta da Nasa, ela “caminhou” no ar, 200 quilômetros acima do chão — era uma das tripulantes do ônibus espacial Challenger. Em 2020, aos 68 anos, como oceanógrafa, Kathy desceu até a Depressão Challenger, na Micronésia, lá no fundão de quase 11 quilômetros, dentro de um canudo de titânio como o Titan, embora mais firme. A pressão, ali, equivale ao peso de 100 elefantes sobre a cabeça de um ser humano. Ela foi convidada por um notório explorador, o russo Victor Vescovo. “O cerne da minha motivação é a curiosidade em torno do nosso planeta”, disse a VEJA. E o que ela viu, aqui e lá, ao cotejar as duas pontas? “O fundo do mar é parecido com a Lua, bem plano, mas um pouco enrugado e sob cada uma daquelas protuberâncias tem o buraco de uma pequena minhoca”, diz. A percepção de Kathy, aparentemente infantil, tem a graça indizível das descobertas de uma criança — e pode servir como retrato de uma imposição: entender mais do ecossistema dos oceanos e seus frutos.

TRAGÉDIA - Os destroços do lendário Titanic: ícone de fascínio permanente
TRAGÉDIA - Os destroços do lendário Titanic: ícone de fascínio permanente (Walden Media//)

Um olhar para o passado é útil, ao abrir túneis para o futuro. Uma das primeiras drogas aprovadas para o tratamento de leucemia, em 1969, foi isolada de um tipo de esponja marinha. Naquele mesmo período, a adaptação de uma molécula descoberta em bactérias que vivem em águas termais foi responsável pelo desenvolvimento do teste de PCR, processo que ficou conhecido durante a pandemia como a principal ferramenta para diagnosticar a Covid-19. “Como os animais aquáticos são adaptados a ambientes tóxico e frios, é possível explorar essas adaptações para criar novos processos industriais e buscar moléculas de relevância clínica”, diz Paulo Yukio Sumida, diretor e pesquisador do Instituto Oceanográfico da Universidade de São Paulo. Há também tesouros minerais, como a Fratura Clipperton, entre os Oceanos Pacífico e Índico. O local é rico em elementos como cobre, níquel, cobalto e manganês e já foi dividido por autoridades internacionais entre dezesseis empresas diferentes que poderão fazer a exploração. Um estudo científico divulgado neste ano, no entanto, aponta que a região, até agora intocada, tem 5 600 variedades, cerca de 90% delas nunca antes descritas pela ciência. Há riscos humanos e para o ambiente? Sim. “Precisamos entender melhor os perigos que tais atividades representam para que possamos decidir se elas devem mesmo ser iniciadas”, diz Alex Rogers, diretor científico da ONG Ocean Census.

ARQUEOLOGIA - Barco de 3 000 anos na Croácia: resgate nos próximos dias
ARQUEOLOGIA - Barco de 3 000 anos na Croácia: resgate nos próximos dias (Philippe Groscaux/Mission Adriboats/CNRS//)

Não se descarta o avanço turístico ao mar, apesar do drama com o Titan — possivelmente em regiões mais rasas. “Os danos ambientais seriam mínimos”, afirma José Souto Rosa Filho, professor do departamento de oceanografia da Universidade Federal de Pernambuco. “Se for possível incentivar esse tipo de turismo, o retorno tende a ser positivo, porque a partir do momento em que as pessoas souberem que em determinado lugar há vida abundante, elas provavelmente vão querer preservá-lo.” É um bom caminho, distante ainda da realidade. Fundamentais na regulação climática do planeta, os oceanos representam 70% da superfície da Terra — porém, soam ainda indecifráveis, palco de tragédias. É impressão que precisa mudar. Vale relembrar uma frase de Jacques Cousteau (1910-1997), que veio antes de Cameron para jogar luz nas profundezas do mar sem fim: “Desde o nascimento, o homem carrega o peso da gravidade em seus ombros, ele é aparafusado à terra. Mas o homem só tem que afundar debaixo da superfície e ele estará livre”.

Publicado em VEJA de 5 de Julho de 2023, edição nº 2848

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