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Para deter os monstros

Sabe-se pouco sobre o que leva a tiroteios em massa como o de Suzano, mas pesquisas já apontam: divulgar nome e rosto dos criminosos incentiva novos ataques

Por Thomas Conti*
Atualizado em 22 mar 2019, 07h00 - Publicado em 22 mar 2019, 07h00

Foi aterrador e trágico o tiroteio na escola de Suzano. Todos sofremos muito lendo as notícias e continuamos sofrendo com os relatos e atualizações, com a dor indescritível das famílias. No dia seguinte, fomos surpreendidos novamente com o tiroteio em massa em mesquitas na Nova Zelândia, com número ainda maior de mortos. Dói também constatar a extrema politização em torno desses casos, transformados em palco para militantes de todo tipo de causa.

Ao longo dos últimos dias, muitos me marcaram e citaram em debates nas redes sociais, tendo como referência a organização de mais de sessenta pesquisas nacionais e internacionais sobre o tema “armas e crimes” que disponibilizo em meu blog (thomasvconti.com.br). É claro que fiquei feliz de ver que cada vez mais pessoas estão preocupadas em basear seu apoio a políticas públicas em pesquisas empíricas de qualidade e que, de alguma forma, posso estar ajudando nisso. Todavia, pesquisar a relação entre armas e crimes em geral é uma coisa, e analisar o problema dos tiroteios em massa em específico é outra. Nenhum dos artigos citados no mapeamento da literatura que publiquei trata de mass shootings (assim são chamados, na literatura especializada em inglês, eventos como o de Suzano). Existem alguns estudos sobre a relação entre disponibilidade de armas e tiroteios em massa, mas os dados ainda são limitados. E temos evidências e razões teóricas para acreditar que tiroteios em massa e crimes em geral são problemas que merecem tratamento e pesquisa distintos.

A primeira dificuldade é que os chamados tiroteios em massa são muito raros. Recorrentes apenas nos Estados Unidos, mesmo lá representam uma parcela muito pequena do total de homicídios cometidos no país anualmente. Nos últimos cinquenta anos ocorreram, nos EUA, por volta de 150 casos com quatro vítimas ou mais cada um. Se um dos obstáculos para a análise das razões de homicídios está justamente na relativa raridade do crime, estudar uma modalidade raríssima de homicídio dificulta ainda mais os esforços de pesquisa. Há o risco de um estudo sobre o tema estar observando ruídos estatísticos, e não identificando relações causais de fato.

Ademais, em parcela expressiva dos tiroteios em massa de maior escala, quem executa o crime encerra seu ato cometendo suicídio. Isso dificulta ou impossibilita entendermos esse crime como o fazemos com praticamente todos os outros, levando em conta que quem o planeja quer evitar ter custos pessoais — não quer ser identificado pela Justiça nem ser malvisto por seus conhecidos, ser preso etc. Muitos dos que efetuam tiroteios em massa já aceitaram de partida aplicar a si mesmos a punição máxima. Por sua vez, o suicídio também é um fenômeno difícil de ser estudado, e são raríssimos os episódios de suicídio precedidos por tamanha violência. Assim, um tiroteio em massa seguido de suicídio, como aconteceu em Suzano, é um caso extremo, de canto, tanto das pesquisas sobre violência e crime quanto dos estudos sobre suicídio.

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Tudo isso para dizer que infelizmente ainda não sabemos muito sobre o que realmente leva a esses atos. Há muitas hipóteses, alguns estudos de caso, e relativamente poucos trabalhos empíricos replicados. Mas já existem, sim, algumas pesquisas sobre o tema, e nos últimos anos parte delas tem convergido para pelo menos um ponto comum: temos evidências significativas de que a divulgação pela mídia dos autores desses massacres — de seu nome, fotos e motivações — aumenta a probabilidade de que novos crimes similares ocorram. Diferentes especialistas têm mostrado que, quando há uma divulgação ampla dos autores de atentados com grande número de mortos, nas semanas seguintes o número de tentativas de tiroteio em massa aumenta substancialmente. Pesquisadores estimam que esse efeito possa explicar um de cada quatro casos, ou um de cada dois, dependendo do estudo e do método empregado. Cada ataque com autores amplamente divulgados significaria na prática mais de um caso efetivamente ocorrendo depois. O nome desse fenômeno é “efeito contágio” ou, sendo mais preciso, “imitação generalizada”.

“Seria razoável que a imprensa adaptasse sua cobertura, para não incentivar novos atiradores”

A explicação de fundo para esse fenômeno é psicológica. Além das teorizações amplas sobre a imitação generalizada, psicólogos têm mostrado que muitos autores desses crimes podem apresentar um perfil narcisista. Quando se pesquisa a história de atiradores, é comum identificar comportamentos de competição com atiradores do passado. Por isso, a divulgação da identidade desses criminosos carrega o risco de criar um incentivo à disputa entre atiradores potenciais, que buscariam superar o número de pessoas assassinadas em ataques anteriores. Há evidências de que a fama seja um dos estímulos importantes que levam os atiradores potenciais a implementar seus planos — seja a fama junto à população em geral, seja junto a algum grupo de ódio de que muitos fazem parte. Assim, a mera ocorrência do crime somada à notoriedade do atirador bem-sucedido incita outros que estariam cogitando algo similar a tomar a trágica decisão de copiá-lo ou, pior, de tentar superá-lo.

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Reduzir o efeito contágio, portanto, pode diminuir o número de ocorrências desse tipo e também o de vítimas a cada ataque. Por isso, seria razoável que os veículos de mídia adaptassem sua cobertura desses eventos, para não originar incentivos a novos atiradores. Não é algo impossível de fazer. A imprensa já tem a prática de não divulgar o nome de torcedores que invadem jogos de futebol, justamente para não criar o incentivo da fama. Também já tem a prática de não divulgar a forma como as pessoas cometeram suicídio — a Organização Mundial da Saúde (OMS), aliás, publica um guia sobre como realizar a comunicação de ocorrências de suicídio, e pesquisadores propuseram guias éticos similares para notícias de tiroteios em massa. Não veicular o rosto, o nome e a história de quem executa esse tipo de crime covarde não seria algo inédito para nossos divulgadores de informação. Basta aplicar o mesmo cuidado que já se tem em outras situações. Com as evidências que temos no momento, essa seria a decisão imediata mais ética e bem informada.

Há alguns anos, a imprensa de países como Canadá e Noruega modificou suas práticas para fazer parte da solução, e não do problema. Espero que no Brasil nossa imprensa mude e passe a ser igualmente responsável. Não agiu assim no caso de Suzano. No domingo 17, o Fantástico, por exemplo, fez o exato oposto, com uma matéria sobre os atiradores e ataques anteriores, mencionando até quem “se inspirou” em quem. VEJA publicou uma reportagem em linhas similares. Mesmo com a melhor das intenções na elaboração dessas matérias, os jornalistas, ao ignorar as evidências a respeito do tema, podem estar inadvertidamente colaborando não para conter o problema, mas para aumentá-lo.

* Thomas Conti é doutor em economia e professor do Insper

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Publicado em VEJA de 27 de março de 2019, edição nº 2627

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