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O pesadelo das milícias

A revelação dos assassinos de Marielle expõe as entranhas do submundo do crime no Rio, mas não responde ao principal: quem mandou matá-la e por quê

Por Leandro Resende
Atualizado em 15 mar 2019, 07h00 - Publicado em 15 mar 2019, 07h00

Foi com pompa e circunstância que policiais e autoridades, aí incluído o governador do Rio de Janeiro, Wilson Witzel (PSC), convocaram uma entrevista coletiva para anunciar, na terça-feira 12, a prisão de dois homens acusados de executar a vereadora Marielle Franco e seu motorista, Anderson Gomes, exatamente dois dias antes de o crime completar um ano. Segundo a Polícia Civil, o sargento reformado da Polícia Militar Ronnie Lessa, de 48 anos, fez os disparos e o ex-PM Élcio Vieira de Queiroz, de 46, dirigiu o carro de onde partiram os tiros. Seguiu-se um minucioso relato de como os dois foram identificados, mas as perguntas “Quem mandou matá-la?” e “Por quê?” ficaram sem resposta. O titular da Delegacia de Homicídios que cuida do caso, Giniton Lages, reconheceu: “Estamos entregando a primeira fase. A segunda ainda está em aberto”.

Lessa, o matador, que se afastou da Polícia Militar em 2009 por ter perdido parte da perna direita em um atentado a bomba, é suspeito de integrar uma das milícias de policiais militares (na ativa ou não) que dominam e aterrorizam vastos territórios no Rio. “A investigação vem revelando essa possível ligação”, confirma a promotora Letícia Petriz. Apesar do currículo, ele é ficha-limpa. Queiroz, o motorista do carro da emboscada, foi expulso da corporação em 2015, após uma operação que apurou relações espúrias entre bandidos e policiais.

VÍTIMA - Marielle: vida e hábitos investigados na internet (Mídia NINJA/.)

A investigação chegou aos dois por meio de uma denúncia anônima recebida em outubro. O informante desceu aos detalhes: disse que o carro usado por eles havia partido de um ponto da orla da Barra da Tijuca conhecido como Quebra-Mar. Uma análise câmera a câmera identificou o trajeto até o Centro, onde Marielle foi morta, aos 38 anos. A interceptação de ligações em antenas de operadoras possibilitou a localização do celular de Lessa, suas mensagens e seu histórico de buscas na internet. O material continha muitas pesquisas sobre Marielle e pessoas ligadas a ela, entre as quais o deputado Marcelo Freixo (PSOL), de quem era muito próxima. O que entregou Lessa de vez foi uma tatuagem no braço direito, deixada brevemente à mostra dentro do carro. O atirador ainda buscou na rede informações sobre a arma do crime, uma submetralhadora HK MP5, o mesmo modelo usado por tropas de elite como a americana Swat. Com ela, acertou quatro vezes a cabeça de Marielle. O motorista Anderson estava na linha de tiro e levou três nas costas. Planejado por cinco meses, o roteiro do assassinato foi executado em três minutos, sem falhas.

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Ao comentarem as postagens e as pesquisas de Lessa, tanto o delegado Lages quanto as promotoras Simone Sibilio e Letícia Petriz aventaram uma possibilidade: Lessa teria eliminado Marielle por razões ideológicas — por ódio à esquerda. Uma das hipóteses, segundo Simone, é de “motivação torpe, decorrente de uma repulsa de Ronnie Lessa à atuação política de Marielle”. Essa ideia, porém, se choca com elementos descobertos pela investigação. O histórico de crimes de Lessa, sua ligação com milícias e o arsenal que supostamente lhe pertencia — mais de 100 fuzis — revelam a silhueta de um matador, não de um ideólogo.

A investigação também trabalha com a hipótese mais evidente, a de crime encomendado — o que a trajetória de Lessa, atirador experiente, reforça ainda mais. Na década de 90, ele fazia parte do temido 9º Batalhão da PM, conhecido pelos métodos violentos. Foi cedido à Polícia Civil, e lá percorreu o caminho de muitos policiais da época que acabaram se envolvendo com a contravenção. A fama de sua pontaria chamou a atenção do bicheiro Rogério Andrade, que o contratou como segurança. VEJA apurou que, em dado momento da carreira, Lessa foi colega de batalhão de Maurício da Silva Costa, o Maurição, um dos líderes (hoje preso) da milícia de Rio das Pedras, a mais antiga e uma das mais poderosas da cidade.

MATADORES - Lessa (à esq.), o atirador, e Queiroz, o motorista, levados para audiência de custódia na quinta-feira 14: crime planejado durante cinco meses (Pablo Jacob/Agência O Globo)

O sargento Lessa, que recebe pensão por invalidez de 7 436 reais, mora com a mulher e dois filhos em uma casa de 280 metros quadrados no condomínio de classe média alta Vivendas da Barra, o mesmo de Jair Bolsonaro — aliás, também na Rua C, sete números adiante. O imóvel é alugado por cerca de 15 000 reais, com taxas. Na garagem, há uma caminhonete Hilux, um Land Rover e um Jeep Renegade — que, quando Lessa foi preso, às 4h30 da manhã, estava equipado para a fuga, com 60 000 reais e passaporte a bordo. Dono de uma lancha “feita sob medida”, segundo alardeia, Lessa passou o Carnaval com Queiroz em um condomínio de luxo de Angra dos Reis.

No dia da prisão, a polícia encontrou 117 fuzis desmontados em caixas lacradas na casa de um amigo de Lessa — carga avaliada em 3,5 milhões de reais que pertencia ao sargento (suspeita-se que o “microempresário”, como se autodefine, trafique armas). O deputado Freixo, que comandou a CPI das Milícias na Assembleia Legislativa há dez anos, é taxativo: “Lidamos com um matador de aluguel. Descarto a hipótese de que ele matou Marielle por iniciativa própria, por discordar do que ela defendia”.

Milicianos rondam as investigações da morte da vereadora desde o momento zero, justamente por ela ter assessorado Freixo na CPI. Em maio passado, um informante contou à polícia ter entreouvido uma conversa em que o vereador Marcello Siciliano (PHS) e Orlando Curicica, chefe de uma grande milícia, estariam planejando a execução de Marielle por causa da atuação da vereadora em suas áreas de influência. Nove meses depois, o denunciante voltou atrás e disse que havia inventado tudo. Os policiais trabalham com a hipótese de que o nome do vereador tenha sido plantado com um único objetivo: desviar o rumo das investigações de mais um possível personagem na trama, o MDB fluminense. Seguindo esse raciocínio, figurões do partido estavam armando uma manobra para ser alçados a foro especial e, assim, escapar da prisão por corrupção. Uma intervenção de Freixo estragou tudo. A morte de Marielle seria então uma vingança contra o deputado.

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ACASO - A residência de Lessa fica na rua de Bolsonaro; à direita, o presidente com Queiroz, em foto de redes sociais (Renee Rocha/Agência O Globo/Redes Sociais/Reprodução)

O nome de Jair Bolsonaro entrou no caso Marielle em razão de três informações. Primeiro, pelo fato de ser vizinho do matador Lessa (“Não lembro desse cara. O condomínio tem 150 casas”, disse Bolsonaro). Depois, pela existência de uma foto de 2011 do presidente com o ex-PM Queiroz, que dirigiu o carro do crime (“Já tirei foto com milhares de policiais”). Por fim, a filha de Lessa namorou o filho mais novo de Bolsonaro, Jair Renan (“Ele me disse: ‘Papai, namorei todo mundo naquele condomínio’”). As três informações, de fato, não passam de meras coincidências. Mas há evidências que não têm o pé no acaso e podem representar uma perigosa proximidade dos Bolsonaro com as milícias.

A família — o presidente e seus filhos — já fez elogios públicos à atuação das milícias no Rio de Janeiro. O hoje senador Flávio Bolsonaro chegou a propor homenagens a policiais que se revelaram integrantes desses grupos paramilitares. Com o escândalo mais recente sobre as suspeitas de manipulação do salário dos funcionários que trabalhavam no seu gabinete como deputado estadual, no Rio, descobriu-se que Flávio Bolsonaro tinha ligação até com um peixe grande: Adriano Magalhães da Nóbrega, chefe da milícia de Rio das Pedras e do famigerado Escritório do Crime, organização de matadores de aluguel que começou prestando serviços a contraventores. Flávio Bolsonaro condecorou o policial criminoso em 2005 e, entre 2010 e 2018, chegou a empregar em seu gabinete a mulher e a esposa do policial. Ele diz que tudo foi obra de um ex-assessor, o enroladíssimo Fabrício Queiroz, e que não sabia do parentesco de suas funcionárias com o chefe do Escritório do Crime. Alvo da Operação Os Intocáveis, a primeira investida contra a quadrilha, Adriano da Nóbrega conseguiu escapar e está foragido até hoje.

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O Escritório do Crime atua há mais de uma década no Rio, mas só veio à luz no ano passado, quando um dos informantes da polícia atribuiu a Adriano da Nóbrega os tiros que mataram Marielle. Expulso da PM em 2014 por envolvimento com a contravenção (bicheiros e milicianos são parceiros antigos), ele foi preso uma vez, em 2004, acusado de assassinar um guardador de carros. Justo nessa época, Flávio Bolsonaro lhe entregou a Medalha Tiradentes, a maior honraria do estado, e só depois empregou a mãe e a mulher dele em seu gabinete.

Em 2009, parte dos membros do Escritório do Crime (sem que o nome aparecesse) foi denunciada pelo MP. Alguns chegaram a ser presos, mas logo voltaram às ruas e à rotina de truculência em áreas sob seu comando. “A impunidade faz com que se fortaleçam. Até as pedras de Rio das Pedras sabem que eles passeiam por todos os crimes previstos no Código Penal”, diz a promotora Simone.

CRIME ORGANIZADO - O miliciano Adriano da Nóbrega, homenageado por Flávio Bolsonaro, e trechos da sua contabilidade obtidos por VEJA: empréstimos e dívidas (no alto) deram lucro de 1,6 milhão no mês (acima, em azul) (//Reprodução)

Nos territórios que dominam, os milicianos foram assimilados e fazem parte do dia a dia, como se o fato de bandidos proverem água, gás e TV a cabo fosse a benemerência mais normal do mundo. A quadrilha de Rio das Pedras, berço do Escritório, toca negócios rentáveis, como agiotagem, grilagem de terras e venda de imóveis irregulares. Obtidos por VEJA, registros da contabilidade mostram movimentação de 1,6 milhão de reais em um único mês só com empréstimos. A quadrilha controla o aluguel de centenas de casas (entre 500 e 1 000 reais) e emite notas promissórias e recibos.

Quanto mais a investigação do caso Marielle avança, mais se toma conhecimento da rede de conexões que liga o submundo dos policiais bandidos com os poderes instituídos. VEJA teve acesso a uma troca de mensagens de Lessa, o atirador, com um inspetor de polícia, seu amigo de infância, que trabalha no departamento de coordenação das delegacias da capital. Nelas se observa uma relação do suposto executor de Marielle com o delegado Allan Turnowski, que comanda o departamento. “Doutor Allan manda um abraço”, diz uma das mensagens. Ex-chefe da Polícia Civil, Turnowski foi indiciado por vazamento de informações, passou oito anos fora e voltou no governo Witzel — ele também, o governador, herdeiro e motor desse jeito de enfrentar o mundo. Durante a campanha eleitoral, o então desconhecido candidato apareceu em um comício no qual uma imitação de placa de rua com o nome de Marielle foi quebrada e exibida como troféu. Agora, no poder, Witzel pediu desculpas à família de Marielle e elogiou a prisão dos assassinos: “Uma importante resposta à sociedade”. Há uma imensa torcida para que tenha sido um elogio sincero.

Com reportagem de Bruna Motta, Jana Sampaio e Thiago Bronzatto

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Publicado em VEJA de 20 de março de 2019, edição nº 2626

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