O Brasil dava sinais de retorno à democracia em 1984, quando diversas organizações sociais surgiram para reivindicar questões sufocadas pela ditadura. Foi nesse contexto que surgiu o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra, com o propósito de lutar por reforma agrária e promover um modelo de produção baseado na agricultura familiar, em contraposição ao agronegócio. Em 2024, o MST chega aos 40 anos, no entanto, em meio a críticas pelo recrudescimento da estratégia de invadir propriedades públicas e privadas. A postura ficou evidente no Abril Vermelho, protesto anual destinado a relembrar o Massacre de Eldorado do Carajás (PA), em 1996: foram 36 invasões em quinze estados, um salto em relação às quatorze em apenas três estados na mesma data de 2023. A ofensiva do grupo, apoiador histórico do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, vem gerando uma forte reação de agricultores e políticos ligados à chamada bancada ruralista, que colocaram em marcha talvez a maior ofensiva já feita contra o movimento em sua história.
Um dos principais fronts de ação está no Congresso. A autodeclarada Frente Parlamentar Invasão Zero, criada após o fiasco da CPI do MST na Câmara — que encerrou os trabalhos sem votar um relatório final —, organizou em um pacote dezessete projetos de lei que buscam tornar mais rigoroso o combate ao grupo. São proposições que vão desde o aumento da pena para o crime de esbulho possessório (tomar posse de um bem de forma ilegal para uso pessoal) à tipificação das invasões como terrorismo. A ideia do formato “pacote” é mostrar que há um conjunto de medidas com o mesmo propósito e assim pressionar os demais parlamentares a acelerar a tramitação. Há ainda um projeto de decreto legislativo tramitando no Senado para derrubar o programa Terra da Gente, a principal iniciativa de Lula para a reforma agrária, lançado em abril, com previsão de assentar 295 000 famílias até 2026.
Alguns projetos já começam a andar, movidos pela ascensão de parlamentares de direita a cargos estratégicos do Congresso. No final de abril, a Comissão de Constituição e Justiça da Câmara, presidida pela bolsonarista Caroline De Toni (PL-SC), aprovou o substitutivo ao PL 709/2023, que veda invasores de propriedades de receber auxílios ou benefícios de programas do governo federal, como o Bolsa Família, assim como de tomar posse em cargos e funções públicas. “Eles têm o Abril Vermelho, e esse é o nosso ‘Abril Verde e Amarelo’”, comemorou o deputado Pedro Lupion (PP-PR), presidente da Frente Parlamentar Agropecuária (FPA). A esquerda minimiza o poder da turma, batizada de Invasão Zero, a que chamam de “fake” por não ter estrutura formal no Congresso. “O papel do Parlamento não deve ser o de atacar grupos vulnerabilizados, pelo contrário”, diz o deputado Valmir Assunção (PT-BA), ligado ao MST. Segundo ele, todo projeto que seja inconstitucional, que afronte os direitos de trabalhadores ou questione a reforma agrária enfrentará resistência da base do governo, e não só dos parlamentares oriundos do MST. Ele lembra que também há projetos que visam punir grandes proprietários que ocupam irregularmente áreas públicas rurais e urbanas.
A iniciativa de apertar o cerco ao MST, no entanto, já saiu de Brasília e ganhou ramificações nos estados. A nova frente parlamentar nomeou coordenadores regionais — a maioria deputados estaduais — para replicar as iniciativas do grupo nacional e monitorar as invasões de terra. “Quando há uma, o deputado vai na tribuna da Assembleia denunciar, chama as forças de segurança e contribui para a criação e o acompanhamento de leis estaduais de interesse da frente”, afirma o deputado Luciano Zucco (PL-RS), coordenador do grupo. Já há projetos de lei de conteúdo semelhante ao PL 709/2023 tramitando nas assembleias de ao menos oito estados (SP, PR, MT, MS, MG, RS, BA e RN). A pauta tem apoio de governadores do campo da direita, como Tarcísio de Freitas (Republicanos), de São Paulo; Romeu Zema (Novo), de Minas Gerais; e Ronaldo Caiado (União Brasil), de Goiás. Cotados como potenciais nomes à disputa à Presidência em 2026, os três fizeram sinalizações recentes ao segmento ruralista com declarações de que, em seus respectivos estados, a tolerância para invasões de terra é zero.
A formação da Frente Parlamentar Invasão Zero foi inspirada na atuação de um grupo de produtores rurais que tem o mesmo nome e vem se articulando desde o ano passado para barrar, por conta própria ou com ajuda de autoridades locais, as ocupações de terra. O grupo Invasão Zero foi formalizado em julho de 2023, durante jantar em Brasília no qual estiveram presentes o ex-presidente Jair Bolsonaro, parlamentares ligados à pauta ruralista e proprietários de terra. Está subdividido em dezessete núcleos regionais e tem cerca de 20 000 integrantes. “Cresceu muito rapidamente por causa da necessidade”, diz o coordenador, o produtor rural baiano Luiz Uaquim. Para alguns setores do Ministério Público Federal mais ligados à esquerda, o grupo representa perigo. Em nota técnica enviada a diversos órgãos em 15 de abril, a Procuradoria Federal dos Direitos do Cidadão apontou que o Invasão Zero nasceu de grupos remanescentes dos atos antidemocráticos e “pode estar abrigando verdadeiras ‘milícias rurais’ sob o manto de aparente legalidade”, e sugere a participação de integrantes no assassinato de uma liderança indígena, em janeiro deste ano, durante conflito de terra no sul da Bahia — dois homens foram presos. “Seguimos uma cartilha e não agimos fora da legalidade”, rebate Luiz Uaquim.
O grupo surge em contexto bem específico: na ressaca do governo Bolsonaro, período em que houve um forte incentivo do poder público à liberação de armas de fogo para donos de propriedades rurais, e no momento em que o MST retomava as ocupações de terra após dois anos (2020 e 2021) sem esse tipo de ação. Em 2022 foram 37 ocupações, e em 2023, 45. Neste ano foram 36 até agora, que envolveram a mobilização de 32 000 famílias. Uma das invasões teve o objetivo de pressionar contra a nomeação de um indicado do presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), para comandar o Incra em Alagoas. A turma ficou cinco dias no prédio, mas saiu após negociação com o novo superintendente.
O próprio MST, aliás, reconhece que seus atos são eminentemente políticos, sendo que o fluxo varia de acordo com o governo de plantão. Por isso, houve um recuo a partir de Michel Temer, chegando a zero com Bolsonaro e retomados sob Lula. “O fato de termos eleito um governo sensível à reforma agrária não é suficiente para resolver naturalmente nossas demandas”, justifica Ceres Hadich, integrante da coordenação nacional. O movimento critica a “morosidade” da gestão petista em relação ao andamento dessas pautas.
A movimentação do MST espreme o governo Lula entre a necessidade de atender sua base mais fiel, de um lado, e de dialogar com forças políticas antagônicas, de outro, para fazer andar pautas de interesse do país no momento em que o governo não tem maioria no Congresso. “As ocupações ou invasões por parte do MST colocam novas barreiras ao diálogo de Lula com o agronegócio e dá mais possibilidades de críticas da bancada ruralista num momento em que os índices de avaliação do governo não estão bons em vários setores”, diz o cientista político Rodrigo Prando, do Mackenzie. Lula hesita entre ser fiel à esquerda e sua crença obsoleta no poder de uma reforma agrária e defender abertamente o necessário respeito à propriedade privada. É nesse campo de indecisão que vem crescendo o cerco político da direita ao MST.
Publicado em VEJA de 10 de maio de 2024, edição nº 2892