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Mistério cerca a morte de cacique waiãpi em aldeia do Amapá

Início confuso de investigações sobre o assassinato de líder indígena deixa apenas uma certeza: a de que um índio realmente morreu

Por Edoardo Ghirotto
Atualizado em 2 ago 2019, 14h42 - Publicado em 2 ago 2019, 07h00

O escândalo correu os perfis em redes sociais de artistas no Brasil, estampou páginas de jornais importantes no exterior e gerou até uma reação da ONU: garimpeiros invadem uma aldeia no interior do Amapá e assassinam o cacique. A lamentação pela tragédia veio misturada ao sentimento de indignação e a um tom de denúncia, ligando a tragédia à política de Jair Bolsonaro de revisão das demarcações de terras indígenas e de abertura dessas áreas à exploração comercial. “Meu coração está com vocês”, afirmou Milton Nascimento, referindo-se à população atingida, os waiãpi. Caetano Veloso disse que o caso exigia uma reação forte: “Eu peço às autoridades brasileiras, em nome da dignidade do Brasil no mundo, que ouçam esse grito”. Jornais como o inglês Guardian e o francês Le Monde publicaram manchetes sobre o episódio. Alta-comissária da ONU para os Direitos Humanos, a ex-­presidente chilena Michelle Bachelet afirmou que o “assassinato de Emyra Waiãpi” é um “sintoma perturbador do crescente problema da invasão de terras indígenas”. Depois de toda essa repercussão, no entanto, as investigações realizadas começaram a pôr em dúvida vários pontos do ocorrido. Até a última quinta, 1º, só havia uma certeza a respeito dele: o cacique realmente morreu. As circunstâncias e possíveis executores permanecem um mistério. Entre os investigadores, há quem questione se foi mesmo um homicídio ou ataque de um animal selvagem.

Chefe de uma das aldeias waiãpi, Emyra Waiãpi, com idade estimada em 68 anos, foi encontrado caído em um rio no dia 23. Os índios que descobriram o corpo dizem que ele foi esfaqueado, estava com os olhos perfurados e teve o órgão genital decepado. A informação sobre o assassinato e sua relação com os invasores chegaram aos ouvidos do vereador Jawaruwa Waiãpi, da cidade de Pedra Branca do Amapari, um dos líderes da etnia. Ele repassou os pedidos de socorro dos indígenas ao senador Randolfe Rodrigues (Rede-AP), que ajudou a espalhar o alerta aos artistas e publicou um vídeo sobre o caso na internet. A Funai emitiu um comunicado em que detalhava a versão contada pelos habitantes da aldeia — e o caso ganhou o mundo.

A história complicou-se com a chegada ao local dos agentes da PF. Guiados pelo filho do cacique até a aldeia Yvytotõ, onde não indígenas também foram vistos, saíram de lá sem ter encontrado vestígios de invasores. O Ministério Público Federal do Amapá convocou uma coletiva para informar que as apurações feitas pelos policiais invalidavam a tese de que a aldeia havia sido invadida. Quem matou o cacique, então? As autoridades dizem que a investigação continua. “Não descartamos nenhuma hipótese”, afirma o procurador Rodolfo Lopes. Dentro da terra waiãpi e fora dela, no círculo de pessoas próximas a esses índios, as palavras das autoridades foram recebidas com ceticismo.

BRUTALIDADE – Emyra: seu corpo foi encontrado no rio com várias perfurações (./.)

Para chegar à aldeia Yvytotõ vindo de Macapá é preciso fazer um trajeto de cerca de onze horas que envolve carro, barco e uma caminhada pela mata. Randolfe Rodrigues, que esteve reunido no dia 30 com índios waiãpi em uma localidade próxima de onde o corpo foi encontrado, disse a VEJA que as forças de segurança investigam o caso com “má vontade”. O senador reproduziu relatos dos indígenas de que a PF ficou menos de 24 horas na aldeia e ignorou indícios de pegadas e de uma trilha aberta na mata. Também não foram usados drones para colher imagens aéreas da região. Rodrigues afirma ainda que servidores locais da Funai foram impedidos de divulgar material sobre a investigação por determinação da direção central, em Brasília.

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(Arte/VEJA)

As 92 aldeias waiãpi espalhadas pelos 6 070 quilômetros quadrados da terra demarcada em 1996 abrigam cerca de 1 450 pessoas. Cada aldeia é habitada por algumas famílias, chefiadas por um índio mais velho. Era esse o papel exercido por Emyra, que é descrito como alguém tranquilo, que mal falava português e não era afeito a visitas às cidades. A morte alarmou os waiãpi porque Emyra nunca se envolveu em conflitos anteriores. Os mais jovens cresceram ouvindo os relatos de pais e avós de invasões de garimpeiros no início da década de 70, quando oitenta índios morreram infectados por sarampo, e de conflitos ocorridos nos anos 80. A antropóloga Dominique Tilkin Gallois, da USP, que estuda os waiãpi e convive com eles desde 1979, diz que as invasões diminuíram drasticamente após a demarcação da terra, mas nunca cessaram. “São sempre pequenos grupos que tentam achar lugares para se instalar, mas não conseguiram nunca.”

Parte da terra waiãpi encontra-se na Reserva Nacional do Cobre e Associados (Renca), uma área que Michel Temer tentou abrir para a mineração, mas foi forçado a recuar devido à pressão popular. No que depender de Jair Bolsonaro, agora a coisa vai. Em meio à comoção pela morte de Emyra, o presidente declarou que não havia “indício forte” de assassinato e aproveitou para afirmar que abrirá terras indígenas ao garimpo. “É intenção minha, inclusive para o índio.” Ao jornal O Globo, contou ter encomendado um estudo ao ministro de Minas e Energia, Bento Albuquerque, para abrir “pequenas Serras Peladas” no país. “E índio também poderia explorar”, disse. Anteriormente, sugeriu que ter o filho Eduardo na Embaixada de Washington seria importante para atrair mineradoras americanas às terras indígenas.

ALVOS – Povoado yanomami: invasões frequentes de garimpeiros em busca de ouro e que contaminam os rios com mercúrio (Robin Hanbury-Tenison/Robert Harding/AFP)

O Conselho Indigenista Missionário (Cimi), que compila dados de violência contra índios, constatou no ano passado um aumento de conflitos por questões territoriais e invasões possessórias. No último caso, houve 96 registros em todo o país em 2017 — 62% a mais do que em 2016. O número de assassinatos de índios contabilizado ficou em 110. Entre os povos mais ameaçados estão os yanomami. A PF estima que sejam retirados 106 quilos de ouro por mês de suas terras, entre os estados do Amazonas e de Roraima e no território venezuelano. Além da presença ostensiva de garimpos ilegais na região, que por vezes resulta em enfrentamentos, o despejo de mercúrio nos rios que abastecem os índios com água e comida provoca graves problemas de saúde. A Fiocruz constatou numa aldeia que crianças menores de 5 anos estavam com 6,8 microgramas de mercúrio no corpo, enquanto mulheres em idade reprodutiva apresentavam 16 microgramas — uma concentração superior a 6 já é alarmante.

No caso dos waiãpi, o interesse comercial decorre da possível existência de ouro no território. Índios que dizem ter testemunhado a invasão à aldeia ainda serão ouvidos pelo MPF — eles relatam que ao menos quatro homens armados cercaram a área. Emyra já havia sido enterrado quando a PF chegou ao local. Os parentes deram autorização para que seja feita a exumação do corpo, que será realizada em Macapá. Reside aí parte da esperança de encontrar novas pistas para esclarecer o mistério do cacique.

Publicado em VEJA de 7 de agosto de 2019, edição nº 2646

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