Na última semana, o advogado Cristiano Zanin Martins, que defendeu o presidente Luiz Inácio Lula da Silva nos processos da Lava-Jato, percorreu os corredores do Senado em busca de apoio para ser confirmado ministro do Supremo Tribunal Federal. Foi bem recebido por praticamente todos os partidos e tem a aprovação dada como quase certa. O “beija-mão” oficial começou na segunda-feira 12, com uma visita ao chefe da Casa, Rodrigo Pacheco (PSD-MG), que o recebeu ao lado de Davi Alcolumbre (União-AP), presidente da Comissão de Constituição e Justiça, órgão a quem compete inquirir os indicados ao STF. Conseguiu de imediato a confirmação da sua sabatina para o dia 21 de junho. Comparados aos quatro meses que teve de esperar o ministro André Mendonça, apoiado por Jair Bolsonaro, os onze dias entre a indicação e o anúncio da data da arguição dão a medida da boa vontade que o Senado tem com Lula — e esse nem foi um caso isolado.
O presidente deve a Pacheco uma boa parte do ambiente que tem na Casa. Embora fossem conhecidas as diferenças entre o chefe do Senado e o presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), as votações da medida provisória que definiu a estrutura de ministérios escancaram isso. Na noite de 31 de maio, com a MP prestes a caducar, Lira disse que os deputados não poderiam ser responsabilizados caso o texto fosse rejeitado ou nem levado à votação. A culpa, declarou, recairia sobre a falta de articulação política do Executivo. “Vamos conversar e sentir se a Câmara dará mais uma vez o crédito ao governo”, afirmou. A MP foi aprovada horas depois, já na madrugada de 1º de junho, dia em que perderia a validade. Na Casa vizinha, o clima foi outro. Diante das incertezas, Pacheco se aprontou: suspendeu a sessão, ficou à espera da votação dos deputados e mostrou estar disposto a seguir noite adentro para garantir a Lula aquilo que, nas suas palavras, “é o DNA, é a essência do atual governo”. Sem sobressaltos, o texto foi aprovado pelos senadores no início da tarde de quinta, mesmo dia em que, com votações rápidas, chancelaram as MPs do Bolsa Família e do projeto de Lula que equipara salários de homens e mulheres em funções iguais.
O desdobramento da votação mostrou o contraste de estilos dos todo-poderosos do Congresso. Enquanto Lira não raro é descrito como “trator”, o vizinho é adepto da “política à mineira” e os seus preceitos de conciliação e discrição. Não se ouve de Pacheco críticas públicas à recorrentemente desancada — não só por Lira — articulação de Lula com o Congresso. O mineiro tampouco tem histórico de proximidade com o bolsonarismo como Lira, que foi o grande fiador do governo anterior e, literalmente, vestiu a camisa do ex-presidente na campanha de 2022. Pacheco ainda atuou em sincronia com o governo em relação à CPMI dos atos golpistas, destravando a sua instalação só depois que o Planalto passou a admiti-la e atuando para que o colegiado tivesse maioria governista. Os posicionamentos fazem Pacheco ser visto no entorno de Lula como um aliado valioso para criar um freio a Lira. “É a oportunidade de o presidente fazer uma contenção no Senado”, diz um cacique da Casa.
Os grupos que cercam os presidentes de cada instituição também têm perfis distintos. Enquanto o presidente da Câmara comanda um batalhão de deputados do Centrão sempre ávidos por cargos e emendas, Pacheco é rodeado de políticos mais experientes e mais pragmáticos. Estão na mesma trincheira governista, por exemplo, parlamentares que já presidiram a Casa como o próprio Alcolumbre, Renan Calheiros (MDB-AL) e Jader Barbalho (MDB-PA).
Alcolumbre, por sinal, é uma peça estratégica no xadrez político do Senado. Fiador da candidatura de Pacheco à sua sucessão, em 2021, ele agora é visto como alguém que trabalha para voltar ao cargo, enquanto atua nos bastidores para pavimentar o caminho do atual presidente do Senado a uma possível indicação a ministro do STF, ambição que Pacheco e seu entorno começaram a alimentar. Além disso, Alcolumbre tem interlocução com Lira e atuou como um “bombeiro” na recente crise com o Planalto. A boa vontade do senador encontra eco no governo, já que é atribuída a ele a indicação de dois dos três ministros da cota do União Brasil: Juscelino Filho (Comunicações) e Waldez Góes (Integração e Desenvolvimento Regional).
Nas próximas semanas, a aliança com Pacheco, Alcolumbre e outros caciques do Senado vai ser colocada novamente à prova. Além da indicação de Zanin, serão analisados os decretos de Lula que alteraram o marco do saneamento básico (e que foram derrubados pela Câmara), o novo marco fiscal (já aprovado pelos deputados) e a indicação do secretário-executivo da Fazenda, Gabriel Galípolo, para a diretoria do Banco Central. Outro tema espinhoso e de interesse do Planalto é o marco temporal para demarcações de terras indígenas, aprovado na Câmara em maio. Alvo de pressões da bancada ruralista e de governadores como Jorginho Mello (PL), de Santa Catarina, que foi a Pacheco pedir celeridade, o marco também está sob análise do STF. Por essa razão, e em acordo com lideranças governistas, Pacheco defendeu que o tema seja debatido pelos senadores sem “açodamento”.
O alinhamento do Senado com os interesses do governo teve poucos contratempos até agora. Uma dessas trombadas aconteceu na última semana, quando a Comissão de Assuntos Econômicos aprovou a prorrogação por mais quatro anos da desoneração da folha de pagamentos de dezessete setores da economia. O relatório de Angelo Coronel (BA), do PSD de Pacheco, estendeu o benefício a cerca de 3 000 municípios. Com um custo estimado de 11 bilhões de reais, a medida foi criticada pelo ministro da Fazenda, Fernando Haddad. O tema passará por segunda votação na comissão e, se aprovado, seguirá para a Câmara. Há possibilidade, contudo, de os governistas pedirem que seja analisado pelo plenário, cuja pauta é controlada por Pacheco.
Apesar de um ou outro tropeço até agora na relação, não há sinais de que pode ocorrer algum esgarçamento sério nessa aliança. O apetite por distribuição de verbas, que é muito menor no Senado, contribuiu para as perspectivas de calmaria. Para o cientista político Carlos Pereira, da FGV, o extinto “orçamento secreto” tinha muito mais impacto como instrumento de poder de Lira sobre os deputados do que de Pacheco em relação aos senadores. “Existe um movimento claro do presidente da Câmara de resgatar o poder perdido, o que não ocorre no Senado”, diz. Para ele, as emendas são mais valiosas a deputados, por nutrir bases paroquiais decisivas no sistema eleitoral proporcional, do que a senadores, que disputam eleições majoritárias. “Às vezes uma palavra, conversar, dá mais resultado do que entregar um cargo a uma pessoa”, diz o senador Omar Aziz (PSD-AM), aliado de Lula. A estimativa é de que o petista tenha o apoio de 42 dos 81 senadores, número suficiente para aprovar projetos de lei, mas não mudanças na Constituição, que exigem 49 votos. Nesse cenário, o presidente pode ter de precisar mesmo de muita conversa — Pacheco, até aqui, tem se mostrado um interlocutor atento e afinado com o governo.
Publicado em VEJA de 21 de Junho de 2023, edição nº 2846