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Legado incerto

A intervenção federal no Rio reduziu a criminalidade, mas não conseguiu mantê-la sob controle — e deixa um saldo controvertido

Por Leandro Resende, Fernando Molica e Guilherme Venaglia
Atualizado em 11 jan 2019, 07h00 - Publicado em 11 jan 2019, 07h00

O pequeno quarto onde o cabo Fabiano dos Santos Oliveira vivia em Japeri, na Baixada Fluminense, passa por mudanças. No lugar da cama do homem de 36 anos, militar morto em serviço durante a intervenção federal na segurança pública do Rio de Janeiro, sua mãe, Dulcenea Lemos, espalha alguns brinquedos da neta Maria Flor, de 3 anos. “Ela para diante das fotos dele e pergunta: papai foi para o céu, não é, vó?”, relata. O imóvel fica em Engenheiro Pedreira, o bairro com o menor Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) do estado. Fabiano levou um tiro de fuzil no ombro em operação na Serra da Misericórdia, entre a Vila Cruzeiro e o Morro do Alemão, na Zona Norte da capital, em 20 de agosto. Na mesma operação, entre os 4 200 militares que ocuparam vários morros, também morreram a tiros os soldados João Viktor da Silva e Marcus Vinícius Viana Ribeiro. Os casos lembram a dureza dos confrontos durante a intervenção federal. Encerrada em 31 de dezembro de 2018, a medida não ofereceu uma resposta satisfatória à dúvida que a persegue desde seu anúncio, em 16 de fevereiro: além de grandiosa e ruidosa, a intervenção foi efetiva?

Quando o então governador e hoje presidiário Luiz Fernando Pezão pediu socorro ao governo Michel Temer, e entregou ao general Walter Souza Braga Netto o comando da segurança do estado, o Rio de Janeiro tinha acabado de viver casos de violência de grande repercussão, entre arrastões em Ipanema durante o Carnaval e um tiroteio na Tijuca que resultou na morte de um garçom. No período em que o estado ficou com os tanques na rua e o reforço de 14 000 homens das Forças Armadas, a maior parte dos índices de criminalidade recuou, em especial aqueles ligados a atos contra o patrimônio. Em 2018, os latrocínios caíram 33,72% entre março e novembro, em comparação com o ano anterior. A diminuição de roubos de carga foi de 19,59%. As maiores quedas (veja o quadro abaixo) ocorreram perto de agosto, período no qual a intervenção foi mais dura. Naquele mês, houve o maior número de mortes cometidas por oficiais (176 casos) e o maior número de operações (109). Em uma delas, oito supostos criminosos relataram agressões sofridas em um quartel. A perícia do Exército feita na época refutou as queixas de coronhadas e choques elétricos, mas o laudo da Justiça comum, obtido por VEJA, confirma, de forma genérica, que houve lesões mais graves. Outro indicativo da tensão: um monitoramento publicado no site de VEJA mês a mês mostrou que em agosto se noticiou o maior número de tiroteios: 107.

A TIROS – Witzel (de terno) leva o caixão do primeiro oficial morto no ano (Marcelo Regua/Agência O Globo)

Quando esses indicativos de embates diminuíram nos meses seguintes, cresceram os roubos de cargas, por exemplo. De uma medida tão radical quanto a intervenção, inclusive em termos institucionais — o Congresso fica impedido de votar emendas à Constituição durante sua vigência —, esperam-se mais que paliativos. O general Braga Netto, em entrevista a VEJA, defendeu-se: “O Rio hoje é mais seguro. Mas é preciso que o trabalho continue”. Para ele, a aproximação das inteligências das polícias civil e militar, promovida pelo seu gabinete, é uma das principais conquistas. O avanço está em xeque com a decisão do novo governador, Wilson Witzel, de criar secretarias separadas para as duas corporações, sob o argumento de valorizá-­las. “Essa divisão dificulta a integração”, diz Renato Sérgio de Lima, presidente do Fórum Brasileiro de Segurança Pública.

Outro ponto turvo do legado são os recursos materiais. Do 1,2 bilhão de reais reservado para a temporada, apenas 121 milhões foram efetivamente gastos, sendo 96 milhões com as próprias Forças Armadas, segundo o Observatório da Intervenção. Quase todo o restante está empenhado em licitações ainda em andamento — e resta torcer para o final feliz de cada uma delas. Para as próximas semanas estão prometidas 400 viaturas. A entrega de outros elementos básicos, como colchões para presos e computadores, está prevista para o resto do ano. São esperados ainda três helicópteros, que chegarão em velocidade de Fusca: até 2021. A alegação para tanta morosidade é a burocracia estatal. Braga Netto diz que lidar com o emaranhado de regras para compras é um dos ensinamentos dados aos policiais.

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BUROCRACIA – Homens do Exército na favela: só 10% do dinheiro reservado para a intervenção foi de fato gasto (Gabriel de Paiva/Agência O Globo)

O governador Witzel, que fez questão de carregar o caixão do primeiro dos três policiais mortos neste ano, negocia com o governo federal a prorrogação da Garantia da Lei e da Ordem (GLO), que autoriza o uso das Forças Armadas no policiamento mesmo sem intervenção. Uma boa tarefa para a parceria entre as esferas estadual e federal é mostrar mais traquejo para lidar com as atrocidades ocorridas em 2018. As investigações sobre a execução da vereadora Marielle Franco, em março, não resultaram ainda nem em indiciamentos — e lá se vão 300 dias. Também é preciso ouvir as queixas de famílias de vítimas como o estudante Marcos Vinícius da Silva, de 14 anos, atingido em confronto entre oficiais e traficantes. Sua mãe, Bruna, relata que, segundo o garoto, o tiro letal partiu de um blindado das Forças Armadas. Ela afirma que é constantemente revistada e intimidada por militares no Complexo da Maré, onde vive. “Não recebi apoio, só ameaça”, diz. Na luta por um Rio menos violento, os homens da lei precisam dar o exemplo.

 


O terror contra o estado

EM EBULIÇÃO – Ônibus queimado no Ceará: facções espalham medo em resposta a medidas mais duras (João DiJorge/Photopress/Estadão Conteúdo)

Um ano depois da maior chacina já vista no Ceará, com catorze mortos em uma festa, o estado nordestino voltou à explosão de violência com os mesmos personagens mas outra dinâmica. Na carnificina ocorrida em 2018 na boate Forró do Gago, numa área dominada pelo Comando Vermelho, membros da facção Guardiões do Estado atiraram a esmo e mataram seis rapazes e oito garotas. Era mais um capítulo do horror da guerra entre criminosos que resulta em cenas só comparáveis às atrocidades do Estado Islâmico: decapitações, mortes com faca de aço cravada nos olhos da vítima e outras brutalidades.

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Neste ano, os episódios de barbárie entre quadrilhas rivais deram lugar ao terror das facções contra o Estado. No intuito de espalhar o caos, integrantes dos grupos criminosos atearam fogo a ônibus, agências bancárias, prédios públicos, pontes, semáforos, caminhões de coleta de lixo e torres de telefonia. As ações são uma resposta ao temor de que o governador Camilo Santana, do PT, reeleito em outubro, endureça a rotina nos presídios. A nomeação do policial civil Luís Mauro Albuquerque para comandar a recém-criada Secretaria Estadual de Administração Penitenciária é um passo nessa direção. No Rio Grande do Norte, Albuquerque, incumbido de missão semelhante, respondeu às rebeliões sangrentas em presídios com rigorosas inspeções nas celas e intensificação das apreensões de celulares. “Desde o anúncio do secretário, o setor de inteligência detectou movimentações dentro e fora do sistema prisional”, diz o secretário da Casa Civil do governo do Ceará, Élcio Batista. Albuquerque deve restringir visitas, instalar bloqueadores de sinal de celulares, ampliar revistas a celas e retirar delas tomadas elétricas. Além disso, pretende não mais separar detentos conforme a denominação em que foram “batizados”. O critério vai mudar. Será por tipo de crime e regime de prisão, se provisória ou não. “Para fazer essa mudança, é preciso haver ações que deem segurança aos presídios”, diz o sociólogo César Barreira, coordenador do Laboratório de Estudos da Violência da Universidade Federal do Ceará. Diante do levante, o ministro Sergio Moro, da Justiça e Segurança Pública, acatou um pedido de socorro, ofereceu uma ajuda branda, mas, entre a sexta-feira 4 e a segunda-feira 7, despachou 406 homens da Força Nacional para o Ceará. Até o fechamento desta edição, os ataques continuavam. Ganha o país se algo de frutífero nascer do trabalho conjunto de uma gestão estadual petista e um ministro celebrado pela caça a outros tipos de bandido, alguns deles colegas de partido do governador Camilo Santana.

João Pedroso de Campos

 

Publicado em VEJA de 16 de janeiro de 2019, edição nº 2617

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