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Impunidade: tragédia da boate Kiss não deu em nada

Décadas de descaso diante de crônicas de tragédias anunciadas tiveram seu ponto culminante no incêndio em Santa Maria. Oito meses depois, ninguém foi punido. E as casas noturnas continuam sendo uma armadilha mortal

Por André Eler
22 set 2013, 18h55

A MAIOR TRAGÉDIA EM CINQUENTA ANOS

6 de fevereiro de 2013

Um sentimento de luto – maior talvez apenas que o de revolta – ainda tomava conta dos brasileiros quando a edição especial de VEJA sobre o incêndio na boate Kiss, em Santa Maria, chegou às bancas. Em uma reportagem que mobilizou toda a sua redação, a revista mostrava como a impunidade e a corrupção haviam contribuído de forma decisiva para a morte de 235 jovens (o número fi nal fi cou em 242), cada um com seus sonhos, seus amores, sua família – seu futuro, enfi m, interrompido de maneira precoce numa noite de horror.

TRECHO: “Na manhã do domingo passado, acordamos todos em Santa Maria e não conseguimos mais sair de lá. Ficamos em estado de choque como seus moradores, sofremos com as mesmas cenas de jovens correndo na frente da boate Kiss, tentando ajudar, tentando entender, tentando saber quem se salvou, quem morreu. Como todos os moradores de Santa Maria, tivemos de imaginar o inconcebível: 235 jovens as fi xiados, queimados, empilhados como os mortos de Pompeia diante de portas sem saída da ratoeira.”

• Leia a reportagem na íntegra

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Nos dias que se seguiram à tragédia da boate Kiss, um súbito furor fiscalizatório tomou conta das autoridades brasileiras. Por todo o país, blitze fechavam boates com saídas de emergência trancadas, extintores de incêndio vazios, rotas de fuga obstruídas. A Câmara dos Deputados mobilizou-se e anunciou que aprovaria uma lei nacional para padronizar as normas de segurança e evitar que o horror se repetisse. Mas aos poucos a fumaça baixou, e o descaso, a corrupção e a impunidade que deixaram um saldo de 242 vítimas, na esmagadora maioria jovens com a vida pela frente, voltaram a se impor.

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Nos últimos meses os repórteres de VEJA percorreram quarenta casas noturnas em seis estados do país – Amazonas, Bahia, Pernambuco, Rio Grande do Sul, Santa Catarina e São Paulo -, a maioria com capacidade acima de 500 pessoas. O objetivo era descobrir o que mudou depois do inferno de Santa Maria, quando um sinalizador lançado num show pela banda Gurizada Fandangueira atingiu o forro da boate, de material inflamável, e provocou um incêndio de fumaça tóxica, uma armadilha sem saída para centenas de pessoas, produzindo a maior tragédia do país em meio século. Acompanhados de técnicos em segurança com o olhar treinado para encontrar falhas, os repórteres constataram que há muitas novas Kiss à espera de uma centelha que transforme, mais uma vez, a diversão em morte. Apenas seis das quarenta boates cumpriam os requisitos básicos nos quatro itens analisados: respeito à lotação, saídas de emergência desobstruídas, extintores carregados e ausência de material inflamável. Em dezesseis desses locais, os especialistas apontaram problemas graves, como portas trancadas e obstáculos que impediam a rota de fuga – atalhos para tragédias. Em outros dezoito, foram encontradas falhas menos escandalosas, mas problemáticas, como falta de sinalização clara para a desocupação. Basta lembrar que muitos dos que morreram na Kiss estavam nos banheiros, porque correram para lá pensando tratar-se da saída.

Quase oito meses depois da tragédia, o projeto prometido pelos deputados tampouco se tornou lei. O texto prevê que os donos dos estabelecimentos e os agentes públicos que deveriam fazer a fiscalização sejam responsabilizados se houver um incêndio; torna obrigatória a abertura de alvarás e resultados de vistoria na internet; exige seguro privado para as casas noturnas; e proíbe o sistema de comandas – para que, em caso de confusão, os seguranças não barrem a fuga dos frequentadores, com medo do prejuízo (nos momentos iniciais da tragédia da Kiss, alguns funcionários, sem noção do inferno que ardia perto do palco, não deixaram que as vítimas saíssem). Em junho, uma comissão aprovou o projeto, que está pronto para ser votado.

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Mas, mesmo que amanhã o Brasil se torne um novo país, em que as leis são cumpridas e os culpados acabam na cadeia, o passado não se apaga. Em Santa Maria, as famílias das 242 vítimas ainda se revezam todos os dias em uma vigília para lembrar a tragédia. Camisetas com o rosto de jovens mortos precocemente chamam atenção no centro da cidade. A boate que foi palco das mortes se transformou em um santuário informal. Cartazes e pichações clamando por justiça estão por toda parte. Em junho, 300 pessoas invadiram a Câmara Municipal da cidade, depois que uma gravação revelou a existência de um acordo para livrar o poder público de culpa na CPI que investigava o incêndio na Kiss. Dois vereadores diziam, de forma clara, que a comissão não poderia resultar em nada, para não atingir a prefeitura. Mesmo com a revolta, o relatório final não apontou nenhum executivo municipal culpado.

A Associação dos Familiares de Vítimas e Sobreviventes da Tragédia de Santa Maria coleciona derrotas na Justiça. Os principais responsáveis pelo que ocorreu na Kiss ainda não foram julgados, e o caso não está nem perto de um desfecho. Dois integrantes da banda Gurizada Fandangueira, Marcelo de Jesus dos Santos e Luciano Bonilha Leão, e os dois sócios da boate, Elissandro Spohr, o Kiko, e Mauro Hoffmann, passaram quatro meses presos e foram soltos no fim de maio. Marcelo e Luciano voltaram para casa, em Santa Maria. Os donos da Kiss deixaram a cidade com medo de represálias. O processo ainda está na fase de depoimentos, e a previsão é que o julgamento não ocorra antes de 2015, na melhor das hipóteses. A esperança de uma punição proporcional às dimensões da tragédia se mostra cada vez mais tênue. “A gente está achando que vai ficar por isso mesmo; parece que querem mostrar que os réus são tão vítimas quanto nossos filhos”, revolta-se Ariane Floriano, mãe de Rogério, que morreu no incêndio, aos 26 anos.

A última sobrevivente deixou o hospital em julho, 156 dias depois daquela madrugada onde futuros foram transformados em cinzas na fogueira da impunidade. As cicatrizes, no corpo e na alma, serão carregadas para sempre pelas famílias das vítimas e pelos sobreviventes. Nos dias seguintes à tragédia, um sentimento de que se faria de tudo para que aquilo nunca mais se repetisse tomou conta do Brasil. De lá para cá, nada mudou.

Com reportagem de Alexandre Aragão, Kalleo Coura e Pieter Zalis

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