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‘Filantropia é dever’, diz neta do fundador das Casas Bahia

'O privilégio de fazer parte de famílias ricas aumenta a obrigação de retribuir', afirma Natalie Klein Duek, empresária de moda e filantropa

Por Natalie Klein Duek*
Atualizado em 20 dez 2019, 10h10 - Publicado em 20 dez 2019, 06h00

Na infância, lembro de as pessoas me falarem mais sobre Samuel Klein como um homem bom do que como um homem bem-sucedido. Ele levava uma vida de conforto, mas não havia ostentação. Até hoje, tenho a impressão de que meu avô sentia mais prazer em dar do que em ganhar. Ficou também a certeza, para mim, de que a maior inquietação dele, no fim da vida, era saber como a família manteria vivo esse seu legado intangível, a filantropia. Há cinco anos, quando o meu irmão Raphael e eu montamos o Instituto Samuel Klein, o desafio foi trazer um olhar do século XXI para os ensinamentos que transbordaram da vida do fundador das Casas Bahia. Embora tenha construído um negócio de enorme êxito empresarial e demonstrado grande responsabilidade pela sociedade em que vivia, ele não teve acesso ao conhecimento formal — era filho de carpinteiros, deixou a escola na Polônia na 3ª série, em meio à perseguição nazista, e começou no Brasil como mascate.

O velho Samuka era puro assistencialismo. Ele se como­via com tudo. Se ocorria um desastre natural, meu avô mandava fogão e geladeira para os desabrigados. Caso os pais não tivessem recursos para arcar com a mensalidade da faculdade do filho, ele garantia o pagamento dos estudos até a formatura. Financiava de construção de escola a festa de casamento. Entendia que, se uma pessoa pedia algo, era porque precisava, então não a constrangia solicitando explicações. Apenas dava a ajuda e dizia: “Muito obrigado pela possibilidade de ajudar”.

O primeiro passo para a criação do Instituto Samuel Klein foi entender melhor quais eram as áreas de maior foco e recorrência de ações da feira filantrópica do meu avô, como apelidamos de brincadeira o gigantesco portfólio de investimentos feitos por ele. Descobrimos que a atenção era dirigida principalmente aos seguintes temas: educação, comunidade e cultura judaica. Foi neles que nos concentramos. Priorizamos a continuidade das causas originais, não colocamos as minhas causas pessoais, ou as do meu irmão, na equação. Para não perdermos isso de vista, pusemos a armação dos óculos do meu avô numa caixinha que fica em exposição, com a frase: “Que possamos enxergar o mundo através da sua visão”.

Outra decisão foi nos tornarmos grantmakers, ou organizações doadoras, aquelas que aportam o próprio capital financeiro para ajudar no processo e desenvolvimento dos projetos existentes. Nunca pensamos em criar ou operar entidades. Hoje somos uma espécie de aceleradora de projetos sociais. Cada um deles fica de dois a quatro anos conosco. Temos um conselho consultivo formado por profissionais com uma perspectiva ampla sobre o assunto. Esse órgão impõe métricas e uma avaliação final de impacto. Dessa forma, preparamos as organizações para que consigam recursos com outros patrocinadores e tenham perenidade. Agregamos sempre instituições matchers — ou pares —, para que em nenhum momento os projetos fiquem 100% dependentes do nosso instituto. O bônus é que obtemos a validação de outras entidades para os programas que apoiamos.

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“Os institutos familiares responderam por 12% do total de 3,25 bilhões de reais investidos no terceiro setor”

Em 2019, trabalhamos com dezesseis projetos e instituições, dos quais quatro foram de apoio à primeira infância, área para a qual afunilamos a nossa prioridade na educação. Ao longo da caminhada, percebemos que é na faixa de zero a 6 anos que podemos causar mais impacto, pois é nos primeiros anos de vida que a criança desenvolve a sua maior capacidade cognitiva e de sociabilidade. O prêmio Nobel de Economia James Heckman, que esteve neste ano no Brasil, fez uma conta impressionante: cada dólar gasto com uma criança pequena trará um retorno anual de mais de 14 centavos durante toda a sua vida. “É um dos melhores investimentos que se podem fazer — é melhor, mais eficiente e seguro do que apostar no mercado de ações americano”, disse ele em uma entrevista nas Páginas Amarelas de VEJA.

Em um país com necessidades prementes, como o Brasil, é difícil concentrar-se em poucos temas, pois todos são urgentes, mas na nossa atuação é necessário ter foco, sob o risco de não fazer diferença de verdade. Assim, quando recebemos um bom projeto com um conteúdo que está fora de nossas prioridades, como saúde ou empoderamento feminino, nós o encaminhamos para instituições que respeitamos nas suas respectivas áreas, como a Fundação Maria Cecilia Souto Vidigal, a Fundação Bernard van Leer e The Pincus Fund for Jewish Education. Participamos ainda de entidades como o Grupo de Institutos, Fundações e Empresas (Gife), pois temos a consciência da necessidade de nos juntar para chegar a soluções duradouras.

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A expressão hebraica tsedaká tem a sua raiz na palavra tsedek (justiça). É a ideia de compartilhar tudo o que transborda em nossa vida, como tempo, dinheiro ou conhecimento. Afinal, todos nós temos alguma área que transborda. Em português, é o que chamamos de filantropia. O meu avô nunca falou muito sobre o assunto. Ele fazia mais do que falava, e nós aprendemos isso quase intuitivamente. Mas eu levo os meus filhos para conhecer nossos projetos sociais e ajudar no que for preciso e os estimulo a praticar tsedaká. Faço isso porque tenho a consciência das adversidades colossais do nosso tempo, para as quais eles devem estar preparados.

No Brasil, os institutos familiares são novos e não têm incentivos fiscais similares aos de países como os Estados Unidos, onde um dos principais exemplos é a Fundação Bill e Melinda Gates, com recursos voltados para áreas como educação e saúde. Apesar das dificuldades, trabalhar com o terceiro setor é uma atividade apaixonante. Sou otimista, pois vejo que existe uma nova geração engajada e atuante em nossa realidade. Um levantamento do Gife mostrou que em 2018 foram doados 3,25 bilhões de reais ao terceiro setor no Brasil, 12% desse valor vindo de institutos familiares. Sinto-me na obrigação de provocar, de incomodar mesmo, com o objetivo de fazer com que mais pessoas entrem em ação. É fundamental compreender que não podemos esperar. Somos também responsáveis pelo abismo social existente no país. Ou, como dizia o meu avô: o nosso privilégio é do tamanho da nossa responsabilidade.

* Natalie Klein Duek, empresária de moda, filantropa e neta do fundador das Casas Bahia

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Publicado em VEJA de 25 de dezembro de 2019, edição nº 2666

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