Já se diz por aí que a mais alta Corte do país deveria trocar de nome e passar a chamar-se Soberba do Tribunal Federal. A soberba seria até bem-vinda se pretendesse definir a casa como um tribunal sobranceiro, elevado, mas, neste caso, refere-se mesmo à arrogância e à presunção com que dois ministros começaram a afundar ainda mais a imagem pública do STF na semana passada. Ao censurar a imprensa e intimidar jornalistas, o ministro Alexandre de Moraes, agindo em nome do ministro Dias Toffoli, presidente do Supremo, criou uma raridade num Brasil polarizado: uniu todos, da esquerda à direita, contra suas decisões arbitrárias e inconstitucionais. Na quinta-feira 18, sob críticas, retirou a censura, mas deu farto alimento aos radicais cujo objetivo é emparedar a Corte e submetê-la a seus interesses políticos.
Nos bastidores do STF, as medidas esdrúxulas têm sido justificadas em voz baixa, sob a alegação de que o inquérito sigiloso aberto para investigar manifestações “falsas, caluniosas, difamantes e injuriantes” contra o tribunal estaria se aproximando de revelações explosivas. A apuração ganhou reservadamente o apelido de “inquérito do fim do mundo”, diante da disposição do presidente do STF de investigar tudo e todos, de cidadãos comuns a procuradores, passando por servidores graduados da administração federal. Dias Toffoli acredita que o tribunal é alvo de uma grande conspiração destinada a desmoralizá-lo.
São pelo menos cinco os alvos de sua contraofensiva: procuradores e policiais federais da Lava-Jato, funcionários da Receita Federal, financiadores de ataques ao Supremo, movimentos de rua bancados para perseguir ministros e perfis em redes sociais. Uma das prioridades do inquérito é identificar quais procuradores acessaram sistemas confidenciais de armazenamento de dados e processá-los por vazamento de informação e violação do sigilo profissional.
A dupla Dias Toffoli e Alexandre de Moraes está disposta, inclusive, a defender a tese de que procuradores receberam pagamentos indevidos em troca de palestras. Outra prioridade é identificar empresas financiadoras de movimentos que estariam por trás da difusão de mensagens caluniosas. Um deles seria o movimento Vem pra Rua, fundado em 2014 para protestar contra a corrupção. Consultados por VEJA, os líderes do Vem pra Rua consideraram uma “ilação” a alegação de que o movimento fomenta ataques ao tribunal. “Nós exercemos nossa cidadania de maneira absolutamente democrática. Quando fazemos alguma ação para que se convençam senadores a apoiar o impeachment do ministro Gilmar Mendes, por exemplo, a gente sempre recomenda às pessoas que sejam educadas e argumentem”, afirma Adelaide Oliveira, líder nacional do Vem pra Rua. No inquérito em curso, também estão sendo rastreados robôs usados para atacar a reputação dos magistrados nas redes e as pessoas que estão por trás dos perfis utilizados na guerrilha digital. Sob a condição de manter seu nome no anonimato, um ministro disse a VEJA: “Há uma saturação nos tribunais. As redes sociais estão causando um estrago enorme nas instituições, principalmente no Judiciário. Há crime, sim, e tem de ser apurado”.
No caso da Receita Federal, o foco da investigação inclui a suspeita de que funcionários podem ter manipulado o algoritmo que define os alvos de apurações fiscais e, com isso, direcionado os computadores da autarquia a restringir a pesquisa a contribuintes com perfil similar ao dos integrantes da cúpula do Judiciário. Em março de 2018, sob o pretexto de “aprimorar metodologia de seleção para identificação de indícios de crimes contra a ordem tributária, corrupção e lavagem de dinheiro ou ocultação de bens envolvendo agentes públicos”, o Fisco pré-selecionou 134 contribuintes classificados como “mais relevantes” para passar por uma espécie de varredura. Alexandre de Moraes já pediu a lista com esses nomes. Seu requerimento tem razão de ser. Há dois meses, VEJA revelou que o ministro Gilmar Mendes estava sendo investigado na mesma operação por “possíveis fraudes de corrupção, lavagem de dinheiro, ocultação de patrimônio ou tráfico de influência”, tarefa que não cabe à Receita. A advogada Roberta Rangel, mulher de Dias Toffoli, também foi alvo do Fisco.
Movido pela convicção de que vem sendo vítima de uma conspiração organizada, o STF recorreu até à censura à imprensa. Na sexta-feira 12, Dias Toffoli, sentindo-se ofendido por uma reportagem publicada pela revista digital Crusoé e pelo site O Antagonista, pediu a Alexandre de Moraes que investigasse o caso. Os veículos noticiavam apenas que o empreiteiro Marcelo Odebrecht enviara cópia de um antigo e-mail em que se referia a Dias Toffoli, então chefe da Advocacia-Geral da União no governo Lula, como “amigo do amigo de meu pai”. Aparentemente, dizia que Toffoli era amigo do ex-presidente Lula, que, por sua vez, era amigo de Emílio Odebrecht, pai de Marcelo. A reportagem não dizia nada além disso, nem havia acusação alguma a Dias Toffoli. Era, sob qualquer ângulo que se examine, uma matéria inofensiva. Alegando que o antigo e-mail não estava em posse da Procuradoria-Geral da República, como informava a reportagem, Alexandre de Moraes disse que se tratava de um “típico exemplo de fake news” — e mandou censurar o texto, aplicar uma multa de 100 000 reais por dia em caso de descumprimento e intimou os jornalistas a depor. Tudo errado — tanto que Moraes teve de recuar da decisão. O e-mail era verdadeiro. Marcelo Odebrecht até informou a um ministro do STF que entregara à Lava-Jato a mensagem contendo a críptica menção a Toffoli, por pressão de procuradores. Da Ordem dos Advogados do Brasil à Associação Brasileira de Imprensa, todos criticaram a censura. Inclusive o ministro do Supremo Marco Aurélio Mello: “Não se pode impor uma censura que visa a proteger, entre aspas, um integrante do tribunal. O Supremo não pode estar se envolvendo nessas questiúnculas. Não tem de estar se defendendo de críticas, ainda que ácidas”, disse a VEJA antes do recuo de Moraes.
Diante das notícias da censura e da devassa em militantes de direita que xingam o STF nas redes sociais, Raquel Dodge, procuradora-geral da República, pediu o arquivamento do tal inquérito sigiloso. Alegou que o Ministério Público não fora consultado previamente sobre a sua instauração, nem sobre as diligências que estavam sendo realizadas. Foi além: Dodge também declarou inválidas todas as provas obtidas até então. Seu recado era claro: até o Supremo Tribunal Federal tem limites. Alexandre de Moraes, no entanto, não acatou o pedido da procuradora, manteve o inquérito ativo e ainda estendeu até julho as investigações em curso. Outro recado claro: o Supremo Tribunal Federal continuará na mesma trilha.
São intrigantes a verve e o empenho resoluto com que o ministro Alexandre de Moraes vem tocando o inquérito sigiloso — e tudo faz parecer que, de fato, o magistrado está certo de que não duela com moinhos de vento. Tanto que, depois de censurar a Crusoé e O Antagonista, determinou busca e apreensão de computadores, tablets, celulares e dispositivos eletrônicos de sete pessoas acusadas de difundir mensagens com “graves ofensas a esta Corte e seus integrantes, com conteúdo de ódio e subversão da ordem”. Entre os alcançados pela decisão estava um general reformado, Paulo Chagas, cuja aparência inofensiva não parece se coadunar com uma tremenda conspiração. Moraes também determinou o bloqueio das contas dos suspeitos em redes sociais. Há meses, ministros do Supremo se mostram incomodados com o que consideram ataques recebidos nas ruas e no mundo virtual. Dias Toffoli decidiu abrir o inquérito sobre o caso ao detectar mensagens em redes sociais que falavam em matar seu irmão mais novo, José Eduardo, portador de síndrome de Down.
A própria origem do inquérito causou surpresa. Instaurada em março, a investigação não foi resultado de um pedido do Ministério Público, ao qual cabe a função de apurar, mas de uma decisão pessoal de Dias Toffoli. Além disso, o relator não foi escolhido por sorteio, como é praxe, mas por indicação do próprio presidente do tribunal. Tão logo a apuração foi anunciada, a procuradora Raquel Dodge pediu explicações ao STF sobre o exotismo. Não foi atendida. Reservadamente, alguns ministros do Supremo dizem que, desde a abertura do inquérito, os ataques contra eles caíram pela metade. Lembram ainda que um empresário que fez doações ao Vem pra Rua procurou Alexandre de Moraes para dizer que nada tinha a ver com eventuais ofensas à Corte. Por essa lógica, os abusos cometidos estariam sendo compensados, e os meios justificariam os fins. A censura, ainda que breve, fez recrudescer no Congresso as articulações pela instalação de uma CPI destinada a investigar o Judiciário e resultou na apresentação de pedidos de impeachment de Dias Toffoli e de Alexandre de Moraes. De resto, ajudou a arranhar um pouco mais a imagem do Supremo — justamente a imagem que Dias Toffoli diz estar tão empenhado em defender.
Publicado em VEJA de 24 de abril de 2019, edição nº 2631
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