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Debate sobre política de drogas ganha força em meio à crise de segurança

Presidente do STF acerta ao propor uma discussão ampla e sem preconceitos sobre as atuais medidas, cujos resultados até agora são desastrosos

Por Valmar Hupsel Filho 27 jan 2024, 08h00

O presidente do Supremo Tribunal Federal, ministro Luís Roberto Barroso, escolheu um palco internacional, o Fórum Econômico Mundial, em Davos, na Suíça, para dar início a uma campanha pela necessidade de se discutir de forma efetiva um dos principais problemas que afligem o Brasil: a segurança pública. E esse debate, segundo o ministro, passa impreterivelmente por uma reflexão sobre a política de drogas aplicada há décadas no país, cujo modelo fracassa nos dois lados dessa moeda, na medida em que vem promovendo um aumento progressivo e de viés racista do encarceramento em massa, principalmente de jovens negros, pobres e moradores das zonas periféricas, bem como da violência e corrupção policial. O efeito colateral disso é o fortalecimento cada vez maior das organizações criminosas, que recrutam “soldados” nos presídios, sem que haja um resultado efetivo no combate ao tráfico ou à violência. Segundo Barroso, o debate precisa ser feito de forma urgente, tanto por quem acha que deve reprimir, quanto por quem defende a legalização em alguma medida. “Porque o que a gente está fazendo não está dando certo”, declarou.

A proposta de uma ampla discussão sobre este assunto é muito bem-vinda e oportuna. Acontece justamente no momento em que o Supremo discute a descriminalização de uma determinada quantidade de maconha para uso pessoal, de forma a diferenciar a posse de Cannabis do tráfico. O julgamento está suspenso desde agosto do ano passado, quando André Mendonça pediu vista. Naquele momento, cinco ministros (Alexandre de Moraes, Rosa Weber, Gilmar Mendes, Edson Fachin e Barroso) já haviam votado favoravelmente à descriminalização. O único voto divergente foi do ministro Cristiano Zanin.

REPRESSÃO - Operação: policiais incineram pés de maconha apreendidos
REPRESSÃO - Operação: policiais incineram pés de maconha apreendidos (ASCOM Policia Civil/.)

ficha maconha

Em dezembro, o processo retornou ao STF e, desde então, aguarda decisão do presidente da Corte para ser incluído de volta na pauta de julgamentos. Enquanto o STF vai fechando posição clara sobre aquela que será a maior mudança da lei antidrogas desde que ela entrou em vigor, em 2006, há resistências sobre o assunto do outro lado da Praça dos Três Poderes. O Executivo trata do tema com o devido cuidado para não melindrar um Congresso conservador e avesso a qualquer mudança na legislação que não seja pelo recrudescimento das forças policiais.

Como se vê, o debate no país nunca foi e continua não sendo fácil — e precisa ir além da descriminalização de substâncias para uso pessoal. De acordo com especialistas, é necessário rediscutir todo o sistema de guerra às drogas implantado desde a década de 1970, considerado como o principal vetor de encarceramento no Brasil. Segundo dados mais recentes do Conselho Nacional de Justiça, em 2022 havia 910 536 presos no país, quase metade deles sob sentenças provisórias. Um a cada três respondia por tráfico de drogas; no caso das mulheres, duas em cada três. “O Brasil vive o fenômeno do encarceramento em massa de forma acelerada desde os anos 2000, com o exponencial crescimento da população carcerária, que foi de 90 000 em 1990 para mais de 700 000 em 2019”, diz um relatório do CNJ sobre o tema. Hoje, o país tem a terceira maior população carcerária em números absolutos do mundo, atrás apenas dos Estados Unidos e da China. O documento aponta ainda que, apesar do aumento das prisões relacionadas a drogas, nem o tráfico nem o número de homicídios diminuiu nesse período.

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LOTAÇÃO - Presos: Brasil tem a terceira maior população carcerária do mundo
LOTAÇÃO - Presos: Brasil tem a terceira maior população carcerária do mundo (Gláucio Dettmar/CNJ/.)

ficha maconha

Outro problema grave é o perfil dos encarcerados, como vem enfatizando o ministro Barroso em declarações recentes. Segundo um relatório do Ipea do ano passado, a maior parte dos acusados por tráfico de drogas é constituída por jovens de 22 aos 30 anos de idade (45,2%), e quase a metade deles (46,2%) são pretos e pardos. Em sua maioria, as prisões são feitas após abordagens de policiais militares na rua ou por meio de denúncias anônimas, com apreensões de quantidades menores que 85 gramas de maconha e 24 gramas de cocaína. Apenas 3,9% das detenções por tráfico são resultantes de investigações criminais. “Esse modelo de repressão não tem resultado relevante”, afirma o ex-secretário da Plataforma Brasileira de Política de Drogas, Cristiano Maronna, doutor em direito penal pela Universidade de São Paulo (USP) e diretor do Justa. “As drogas continuam a circular livremente e não se vê notícia de ‘biqueira’ sem funcionar por falta de produto”, completa o especialista.

Pelo contrário, em quase cinquenta anos da atual política de drogas, o país viu o nascimento e o crescimento vertiginoso de organizações criminosas cada vez mais especializadas no tráfico não só para o público interno. As maiores delas, o Primeiro Comando da Capital (PCC), em São Paulo, e o Comando Vermelho (CV), no Rio, hoje disputam em pé de igualdade com os principais cartéis de tráfico internacional de entorpecentes, com atuação em países como Paraguai, Bolívia, Peru, Colômbia, Equador e presença relevante no mercado europeu e global. “Nossa política de guerra às drogas é um retumbante fracasso”, define o desembargador do Tribunal de Justiça de São Paulo, Marcelo Semer, pesquisador sobre o tema e autor do livro Sentenciando Tráfico: o Papel dos Juízes no Grande Encarceramento. De acordo com ele, a política atual não conteve o comércio de drogas nem ajudou a reduzir o consumo e muito menos a violência. Ao contrário, contribuiu para criar e fortalecer as facções criminosas e aumentou a letalidade da política de confronto, que causa muitas mortes no Brasil. “É difícil conhecer uma política que tenha provocado tantos problemas e nenhuma solução”, conclui Semer.

REGULAÇÃO - Uruguai: legislação permite compra de Cannabis em farmácias
REGULAÇÃO - Uruguai: legislação permite compra de Cannabis em farmácias (Matilde Campodonico/AP/Imageplus)

Em comparação com vários países do mundo e até com os vizinhos de continente, o Brasil é um dos mais atrasados em atualizar a abordagem à questão das drogas, e um dos últimos a apostar na proibição para uso pessoal. A tendência mundial é de descriminalização. Países como Argentina, Bolívia, Venezuela, Colômbia, Peru, Chile e Equador possuem legislações que não criminalizam o consumo ou porte para uso próprio. A mais antiga delas é a do Paraguai, de 2009, e a mais moderna é a do Uruguai. Há dez anos, esse país implantou um escopo legal que promoveu a regulação estatal de toda a cadeia produtiva da maconha, desde o plantio até o consumo.

Pelo modelo uruguaio, o usuário tem três formas de acesso à Cannabis legal: por meio do autocultivo, em que o cidadão pode colher até 480 gramas por ano; em clubes canábicos nos quais cada associado tem cota pessoal, por ano, também de 480 gramas; ou comprando em farmácias, onde três tipos de maconha são vendidos em pacotes de 5 gramas, a menos de 60 reais cada, e o comprador tem direito de adquirir até 10 gramas por semana. O acesso é restrito a uruguaios maiores de 18 anos cadastrados — e proibido a turistas, por exemplo. Na época em que a regulação foi implementada, críticos diziam que ela iria provocar aumento de violência, de consumo (principalmente entre os mais jovens) e de volume de tráfico. Nada disso aconteceu. Ao fazer um balanço sobre a experiência de uma década de mudança na legislação, o secretário-geral do Conselho Nacional sobre Drogas do Uruguai, Daniel Radío, disse que a regulação foi feita basicamente para garantir direitos individuais e afastar o usuário das organizações criminosas. “Todos os dias temos notícias de jovens que morrem por causa do contato com pontos de vendas clandestinos de drogas, algo que jamais vemos com quem compra no mercado regulado. Isso não parece um avanço do ponto de vista civilizatório?”, afirmou.

POLÊMICA - Marcha pró-legalização: PEC no Congresso quer manter proibição
POLÊMICA - Marcha pró-legalização: PEC no Congresso quer manter proibição (Lucas Lacaz Ruiz/Fotoarena/.)

No Brasil, qualquer iniciativa em direção a caminho parecido tem recebido forte oposição no Congresso. Há preconceitos até na análise do uso da maconha medicinal. Mas o tabu maior é com relação ao uso recreativo. Quando o Supremo sinalizou pela formação de maioria pela descriminalização, o presidente do Senado, Rodrigo Pacheco, apressou-se em articular uma Proposta de Emenda à Constituição (PEC) na direção contrária. Diferentes visões sobre o problema são válidas e merecem respeito, mas já passou da hora de uma discussão mais profunda sobre o tema. Como lembrou o ministro Barroso, há evidências cabais de que as políticas adotadas por aqui até agora resultaram em um desastre nas áreas social e de segurança. Em resumo, é necessário mais luz e menos fumaça nesse debate.

Publicado em VEJA de 26 de janeiro de 2024, edição nº 2877

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