O que dizer de um advogado criminalista que, no posto de ministro da Justiça da França, conseguiu aprovar a abolição da pena de morte — o que significou o fim da guilhotina que cortava a cabeça de nobres e plebeus desde 1792? Em 9 de outubro de 1981, durante o primeiro mandato do socialista François Mitterrand, o jurista Robert Badinter conseguiu reunir a maioria dos votos da Assembleia Legislativa em torno de um veredicto sempre adiado. A decisão — longe da unanimidade — foi aprovada por 369 votos contra 113 entre os deputados e por 161 a 126 entre os senadores. Humanista histórico, orador como poucos, homem cujas sobrancelhas espessas lhe conferiam um ar a um só tempo calmo e rigoroso, fez naquela tarde um discurso que ainda hoje ecoa. “Em última análise, a abolição é uma escolha fundamental, uma certa concepção do ser humano e da Justiça. Quem quer uma Justiça que mata é movido por uma dupla convicção: a de que existem pessoas totalmente culpadas, ou seja, totalmente responsáveis pelos seus atos, e que pode haver uma Justiça segura de sua infalibilidade a ponto de dizer que esse pode viver e esse outro deve morrer.” Menos de um ano depois, ele conseguiria um outro feito extraordinário: a descriminalização da homossexualidade. Badinter morreu em 9 de fevereiro, aos 95 anos, em Paris. Disse dele o presidente Emmanuel Macron: “Era uma figura do século, uma consciência republicana, o espírito francês”.
A música como pôr do sol
Houve espanto seguido de silêncio quando um jornalista alemão fez a pergunta incômoda ao maestro Seiji Ozawa: “Como pode o senhor, um japonês, entender Beethoven, Mozart ou Brahms?”. Muitos anos depois, em 1979, ele daria a resposta, em uma entrevista para o The New York Times: “A música é tão internacional como o pôr do sol. Pode ser visto desde Paris até Tóquio. Mas sempre haverá quem o aproveite e o aprecie mais. Todo mundo pode aproveitar Mozart, mas nem todas as mentes estão dispostas a prestar atenção”. Ozawa, nascido na Manchúria chinesa durante o período de ocupação japonesa, foi durante três décadas, a partir de 1973, diretor da Orquestra Sinfônica de Boston, nos Estados Unidos. Gostava de ser chamado pelo seu nome e não por “maestro”. Os cabelos longos e o sorriso estampado no rosto o fizeram popular. De gestos contidos, criava peças memoráveis. Uma delas, entre tantas outras, é como o nascer do sol: a gravação da Sinfonia Número 1 de Gustav Mahler. Ozawa morreu em 6 de janeiro, em Tóquio, aos 88 anos.
Corrida interrompida
Parecia impossível bater o recorde mundial da maratona, estabelecido em 2022, na prova de Berlim, pelo fenomenal queniano Eliud Kipchoge, com o tempo de 2h1m9s. Um outro atleta do Quênia — fábrica de campeões de longa distância — chegou lá. Em outubro do ano passado, Kelvin Kiptum percorreu os míticos 42 quilômetros em 2h35s, em Chicago. A diferença de pouco mais de trinta segundos parece pequena, mas é uma imensidão. Os dois conterrâneos fariam na Olimpíada de Paris, em julho e agosto, um duelo de gente grande. No domingo 11, contudo, Kiptum e seu treinador, o ruandês Garvais Hakizaman, sofreram um acidente de carro, no Quênia, que tirou a vida dos dois. O corredor tinha 24 anos. Kipchoge lamentou, em postagem na rede X: “Tinha a vida inteira pela frente para alcançar uma grandeza incrível”.
Publicado em VEJA de 16 de fevereiro de 2024, edição nº 2880