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Coronavírus: o drama dos idosos, a faixa etária mais frágil e exposta

O problema do brasileiro antigo ficou ainda mais dramático com a crise da Covid-19

Por Roberta Paduan Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO Atualizado em 17 abr 2020, 18h13 - Publicado em 17 abr 2020, 06h00
(Jonne Roriz/.)

MARIA DAMACENO, 81 ANOS Pirituba, São Paulo (SP)
A baiana, que vive com a filha e o genro, diz que “escreve pouco”, mas teve de aprender a usar o WhatsApp durante a quarentena. Também passou a acompanhar os cultos pelo rádio e pela internet e a fabricar máscaras de pano para funcionários de uma oficina. Viúva há mais de vinte anos, depende da pensão de pouco mais de um salário mínimo que recebe desde a morte do marido.

A pandemia do novo coronavírus vem escancarando algumas das principais mazelas brasileiras, como as condições desumanas de moradia, as deficiências da estrutura pública de saúde e a falta de preparo de uma parcela da nossa classe política. Mas talvez a maior delas tenha sido lembrar que somos cada vez mais um país de idosos — 15% da população hoje, em comparação com 4,7% em 1960 — e que esse fato deixou em torno de 32 milhões de pessoas na linha de frente do rastro de morte trazido pela epidemia. Até a quinta-feira 16, três de cada quatro vitimados pela Covid-19 (75%) tinham mais de 60 anos. O definhamento do sistema imunológico com o passar do tempo e comorbidades como hipertensão, diabetes e cardiopatias aumentam exponencialmente a possibilidade de o paciente desenvolver complicações graves. O drama expõe ainda a nossa dificuldade histórica de lidar com os mais velhos, condição ilustrada pelo presidente Jair Bolsonaro ao defender o isolamento vertical, ação que seria nada mais que segregar idosos e doentes para que o resto do país, que “não pode parar”, volte à normalidade. “Cada família tem de botar o vovô e a vovó lá no canto, e é isso. Evitar o contato com eles a menos de 2 metros. E o resto tem de trabalhar”, disse ele em uma entrevista.

A prática do isolamento vertical, porém, não é defendida, neste estágio da pandemia, por autoridades no assunto, como a Organização Mundial da Saúde (OMS), nem adotada pelos principais países do mundo. No passado, outras enfermidades, como a tuberculose, também castigaram a humanidade e levaram a saídas desumanas como a segregação total dos doentes. “O risco é que, em nome da proteção contra a Covid-19, se promova o isolamento dos mais velhos, e percamos todo o trabalho que tivemos ao longo de décadas para inseri-los nas atividades sociais”, afirma o geriatra Wilson Jacob Filho, professor da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (USP). Até porque o coronavírus, mesmo após controlada a pandemia, continuará por aí, sempre como uma ameaça extra aos idosos a cada temporada. Para Jacob Filho, ainda não é possível dimensionar a extensão do estrago biológico e comportamental que a doença provocará. “Tudo depende de quanto tempo a ciência levará para encontrar uma vacina ou um tratamento eficaz”, diz.

(Jonne Roriz/.)

JOSÉ e CLEIDE FREGONEZE, 73 anos Jundiaí (SP)
“Ele só sai de casa para levar o lixo e, mesmo assim, vai de máscara”, diz a esposa sobre o isolamento do marido. Os dois sentem saudade de quando buscavam a neta na escola. A filha ajuda nas tarefas externas, como pagar o plano de saúde, um diferencial em um país onde 77% dos idosos dependem só do SUS.

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A pandemia obrigou muitos idosos a mudar sua rotina, como a carioca Marlene Manso da Costa Reis, de 87 anos, que se refugiou em sua casa, em Copacabana, bairro onde 27,5% dos moradores têm mais de 60 anos. Ela diz nunca ter visto nada parecido. “E olha que eu já vivi muita coisa”, diverte-se a ex-professora e tradutora de inglês formada em direito. Há um mês, Marlene interrompeu os encontros com amigos, as atividades voltadas para jovens no Rotary e as idas a restaurantes e cafés, sempre apoiada em um andador. Também suspendeu as sessões semanais de hidroterapia e as aulas de percussão (pandeiro, bongô e tamborim). A empregada, que trabalha na casa há mais de uma década, decidiu permanecer em quarentena com Marlene. As compras são feitas pela internet e pelo telefone. Até a vacina contra a gripe foi aplicada em domicílio. “É claro que não é a melhor das situações, mas não posso reclamar, porque tenho um apoio que a maioria das pessoas não tem”, diz Marlene, que vive sozinha desde que perdeu o marido, em 2004.

A renda mensal média nessa faixa etária é de 1 931 reais, mas muitos se viram com o salário mínimo da aposentadoria, que, por ser regular, deixa vários idosos em situação de prover financeiramente a família — eles são 30% dos chefes de domicílio do país. Moradora da Cidade de Deus, no Rio, Elizabeth Alves, 65, atravessa a quarentena sofrendo privações. Vivendo em um apartamento do Minha Casa, Minha Vida, ela viu a renda cair à metade depois de ser obrigada a suspender as faxinas que fazia para complementar os 1 045 reais da aposentadoria — que encolheu para 600 reais por causa de dois empréstimos consignados. “Alguns continuam pagando o serviço, mas outros, com problemas financeiros, deixaram de pagar”, diz a diarista.
A renda baixa dessa fatia da população faz com que ela também seja a principal cliente dos hospitais públicos. Quase 80% dos idosos dependem exclusivamente do SUS, uma preocupação a mais para eles no momento em que a pandemia ameaça começar a exaurir os leitos e recursos do Sistema Único de Saúde. O casal José e Cleide Fregoneze, ambos de 73 anos e moradores de Jundiaí, no interior de São Paulo, consegue arcar com um plano de saúde privado. A exemplo de muitos nessa faixa etária, eles têm um histórico complicado de problemas de saúde. Cleide é portadora de hipertensão, diabetes e artrite reumatoide. José tem enfisema pulmonar. As comorbidades se acumulam com o passar dos anos. Metade das pessoas que chegam aos 60 anos apresenta pelo menos uma comorbidade. Entre os que atingem 85 anos, metade já sofre de pelo menos três. Todas essas doenças aumentam o grau de risco de morte diante do novo coronavírus.

 

(Acervo Pessoal/.)

MARLENE MANSO DA COSTA REIS, 87 ANOS Copacabana, Rio (RJ)
Ex-professora e tradutora, ela mora em um bairro que abriga, proporcionalmente, a maior população de idosos do país. Diz não se recordar de nada como a pandemia do coronavírus. “E olha que me lembro bem dos últimos anos da II Guerra Mundial”, conta ela, que no período morava nos EUA com o pai, um oficial da Marinha.

Alguns problemas do país, como a baixa escolaridade, também têm um peso mais cruel para os mais velhos. A universalização tardia do ensino fundamental, na década de 90, deixou como legado 36% de analfabetos nessa faixa etária. A maior parte só frequentou os primeiros quatro anos de escola. “A deficiência da nossa educação fez com que nossos idosos parassem no século passado”, afirma Marcelo Neri, coordenador do estudo “Onde estão os idosos? Conhecimento contra a Covid-19”, realizado pelo Centro de Políticas Sociais da FGV-­RJ. Pesquisar informações sobre a Covid-19 na internet, usar a rede para operações bancárias e baixar aplicativos úteis para facilitar a comunicação, entre outras atividades banais para uma parte considerável dos brasileiros, parecem coisas de um universo distante e inacessível para pessoas como a baiana Maria Damaceno dos Santos, 81. Ela explica que “escreve pouco” e só lê a Bíblia. Recentemente, aprendeu a usar o WhatsApp, mas gosta mesmo é de ligar para os parentes e amigos. Moradora de Pirituba, na capital paulista, é viúva há mais de duas décadas. A filha e o genro moram com ela. A pensão do marido, pouco mais de um salário mínimo, não dá para seus gastos, por isso ela fabrica tempero caseiro e o vende à vizinhança. Há um mês sem sair de casa, perdeu quase toda a renda extra. Teve de suspender as aulas de dança secular que frequentava em um centro da prefeitura e as idas à igreja. Hoje, ocupa-se com os cultos pelo rádio e internet, quando a filha os acessa para ela no celular. Também fabrica máscaras de pano para funcionários da oficina mecânica do genro.

SOB RISCO - Idosos em frente à Catedral de Milão, na Itália: no país europeu, 95% dos mortos tinham mais de 60 anos (Miguel Medina/AFP)

Serve de alerta a experiência do impacto doloroso da Covid-19 sobre os idosos de países que já sofrem há mais tempo com a pandemia. A doença gerou cenas horrorosas mesmo em nações com um colchão de proteção social muito melhor que o do Brasil, como moradores morrendo solitários em casas de repouso na Itália, país onde 95% das mortes pelo coronavírus são de pessoas com mais de 60 anos. Na França, estima-se que 150 das 700 casas que acolhem idosos na região de Paris tenham pacientes com a doença. Apesar de essas instituições terem aumen­tado as restrições de visitas, impondo a reclusão máxima, as mortes suspeitas continuam ocorrendo. Por aqui, até agora são muito tímidas as medidas para proteger essa fatia da população. Na quarta 15, o ministro da Economia, Paulo Guedes, sugeriu ao presidente o pagamento de uma parcela de 115 reais a idosos vulneráveis. Se aprovada, a medida beneficiará quase 600 000 pessoas. O valor baixo e a demora do governo em pensar no assunto demonstram que o país ainda tem muito a fazer para tratar com mais dignidade seus idosos. “Nós os enxergamos com respeito ou como um estorvo?”, pergunta a geriatra Karla Giacomin, ex-presidente do Conselho Nacional dos Direitos do Idoso. O Brasil precisa dar uma resposta mais robusta e urgente a essa chaga que ganhou contornos dramáticos em tempos de coronavírus.

Publicado em VEJA de 22 de abril de 2020, edição nº 2683

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