As imagens de militares trajando vestimentas de proteção máxima, escondidos sob máscaras contra gases e borrifando produtos químicos em ambientes públicos podem embutir certo exagero, mas carregam um importante simbolismo. “É uma guerra com um inimigo invisível e feroz”, resumiu o ministro da Defesa, Fernando Azevedo e Silva. Já há mais de 20 000 soldados atuando para ajudar nos planos de contenção da Covid-19. Além da descontaminação de rodoviárias, metrôs e hospitais, as Forças Armadas atuam na distribuição de medicamentos, no deslocamento de pacientes e na montagem de hospitais de campanha. Um centro de operações, com dez comandos espalhados pelo país, acompanha de perto as ações em todos os estados e municípios e mantém interlocução direta com prefeitos e governadores. Embora não pareça, essa, pode-se dizer, é a missão mais simples.
Longe do alcance dos olhos, os militares se preparam para atuar em outra frente, caso a propagação da doença descambe para situações extremadas impulsionadas pelo desemprego e pelo crescimento da pobreza. Por ordem do governo, as tropas estão aquarteladas. Num primeiro momento, a medida está sendo anunciada como uma forma de proteção contra o vírus. A razão de fundo, no entanto, é outra. Como ninguém sabe ao certo a dimensão dos efeitos que a doença pode provocar, principalmente na economia, as Forças Armadas temem o que chamam de “indisciplina social”. “A pessoa, quando chega a um determinado estágio de necessidade, não tem mais nada a perder. Ela vai saquear um mercado, vai assaltar, vai fazer o que for necessário. É uma coisa caótica, que foge ao controle das autoridades”, diz um oficial da cúpula do Exército.
Num cenário assim, as Forças Armadas usariam a Garantia da Lei e da Ordem (GLO), decretada pelo presidente da República, para levar as tropas às ruas — como aconteceu no ano passado na Amazônia, em meio aos incêndios na floresta, e mais recentemente no Ceará, com o motim de policiais. A medida, por ora, é vista apenas como uma indesejada contingência. Existe o receio de que haja distúrbios principalmente nas camadas mais pobres, as primeiras a sentir os efeitos do isolamento e do consequente agravamento da crise econômica. Além disso, há uma preocupação muito grande com reações como pânico, depressão, preconceito e violência — em Águas Lindas (GO), distante 60 quilômetros de Brasília, uma casa foi apedrejada depois de circular pelas redes sociais um áudio falso que dizia que a moradora estava infectada pelo coronavírus. Por tudo isso, cerca de 400 000 militares do Exército, da Marinha e da Aeronáutica foram colocados de prontidão em todo o país.
Na última segunda-feira, 30, o ex-comandante do Exército general Eduardo Villas Bôas recorreu a uma rede social para pedir a integração de esforços, ressaltar que “ações extremadas podem acarretar consequências imprevisíveis” e reforçar que essas ações poderão levar a “um preço elevado a ser pago pelos desassistidos e os que vivem na informalidade”. Era um claro pedido de equilíbrio, que rendeu ainda uma homenagem a Jair Bolsonaro: “Conheço o presidente e sei que ele não tem outra motivação que não o bem-estar do povo e o futuro do país”. Villas Bôas, que sofre de uma doença neurológica grave, é uma espécie de oráculo dos militares. No dia seguinte, a Ordem do Dia publicada pelo Ministério da Defesa sobre os 56 anos do golpe militar de 1964 exaltou a democracia, a “convivência coletiva civilizada” e ressaltou que hoje os “brasileiros vivem o pleno exercício da liberdade e podem continuar a fazer suas escolhas”. O texto não faz referência direta à crise provocada pelo coronavírus e também não fica claro se o ministro se refere ao atual contexto político, em que atitudes confusas e destemperadas do presidente geraram panelaços e até desengavetaram a palavra “impeachment” nas rodas políticas de Brasília.
Publicado em VEJA de 8 de abril de 2020, edição nº 2681