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Como vota quem mora em Antônio Cardoso, onde 92% são negros e pardos

Com cerca de 11.500 habitantes, município da Bahia tem duas áreas quilombolas; VEJA esteve no local e conversou com moradores e lideranças sobre as eleições

Por Dagmar Serpa
24 Maio 2018, 20h48

Não se encontram vias devidamente pavimentadas, calçadas e bueiros ou outros sinais de urbanização. Nem mesmo quando se chega ao pequeno punhado de ruas e casas conhecido por moradores como “sede”. É onde ficam a modesta prefeitura e suas secretarias, o escasso comércio, quase nenhum serviço. Um dos 17 municípios do interior da Bahia que compõem o território de identidade Portal do Sertão, Antônio Cardoso é essencialmente rural — mais de 70% dos moradores estão em áreas assim classificadas, segundo o IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística).

Distante cerca de 145 quilômetros de Salvador, foi a única cidade brasileira em que a maioria dos habitantes se enxergava como negro no último Censo, realizado em 2010. Dos cerca de 11.500 habitantes na época, 55,11% se autodeclararam daquela forma. Ao incluir os que se diziam de cor parda (37,1%), o município contava com 92,21% de afrodescendentes.

Conversas sobre eleições por ali indicam que, diante de uma eventual candidatura, o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT)  — hoje preso e condenado na Lava Jato — teria altas chances de levar a melhor. “Eu votaria nele. Pode ser até que tenha roubado, mas pelo menos olhou para a classe mais fraca, entendeu? Se temos uma casa digna hoje ou um conseguiu carro, isso veio através dele”, diz Lusinete de Meneses Santos, 44 anos, há 25 atuando como merendeira de escola municipal. Isso a coloca na minoria de 5,8% de habitantes ocupados (com emprego formal), conforme apurou o IBGE em 2015, em um município em que metade (49,9%, precisamente) ganha até meio salário mínimo, segundo o Censo de 2010.

Levada aos 7 anos para a casa de outra família — que a abrigou para realizar trabalhos domésticos e depois a criou “como filha” —, Lusinete conta parte dos sacrifícios que fez para completar o ensino médio e, depois, ganhar a vaga de merendeira em concurso. “Eu estudava com vela, porque não tinha luz em casa, e com menina pequena do lado”, diz ela, hoje casada, com dois filhos.

Ela no entanto não acredita que o ex-presidente poderá disputar as eleições, por causa da Lei da Ficha Limpa. Nesse caso, não tem alguém para substituí-lo. “Lula não vai voltar mais. Vai votar em um que faça o que Lula fez? Não acredito”, diz. “Eu não me importo muito com partido, viu? Vou pela pessoa”, diz ela que, já foi do PT, votou em Marina Silva (atualmente na Rede) e pediu votos para um vereador do PP.

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Lusinete trabalha em uma localidade, Bananeira, e mora em outra, Paus Altos, onde está envolvida com a associação de moradores desde 2002. Coordena um grupo de mulheres, batizado de Sete Damas, que produz doces caseiros para vender e gerar renda em uma “comunidade que não tinha nada”.

Luzinete
‘Eu votaria nele (Lula). Pode ser até que tenha roubado, mas pelo menos olhou para a classe mais fraca, entendeu? Se temos uma casa digna hoje ou um conseguiu carro, isso veio através dele’, diz a merendeira Lusinete de Meneses Santos, 44 anos (Shai Andrade/VEJA)

Paus Altos forma com Gavião a dupla de povoados locais reconhecidos pela Fundação Palmares, do governo federal, como áreas quilombolas, ou seja, ocupadas no passado por escravos. A oficialização foi em 2010, mesmo ano do Censo. “Isso causou um grande movimento, e a maioria das pessoas passou a se autorreconhecer como negra. Antônio Cardoso é um grande quilombo, porém, só com duas comunidades reconhecidas até agora”, afirma Euzébio Souza, 45 anos, o atual presidente da Associação Rural Quilombola de Santa Cruz, Paus Altos e Adjacências.

Nascido em Paus Altos, casado e com seis filhos, ele também ocupa na atual gestão municipal o cargo de coordenador-chefe da Defesa Civil. “O município não oferece condições de emprego. A única fonte é a prefeitura. Não tem indústrias, nada, e o comércio é pequeno”, afirma Souza, o 14º dos 24 filhos (22 vivos) de “uma família pobre” dedicada à agricultura familiar. Chegou a passar fome e tinha de conciliar o precoce trabalho na roça com os estudos, iniciados em casas de algumas professoras, por falta de escola.

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Hoje, Souza cursa educação no campo na Universidade Federal do Recôncavo da Bahia (UFRB). Atribui o salto ao engajamento em causas sociais, para o qual despertou nos anos 1990. “Devo tudo que sou e o que aprendi aos movimentos sociais”, garante ele, que já foi filiado ao PT, mas largou faz “uns quatro anos”. Não descarta voltar, embora enfatize que a associação presidida por ele é “independente, com sua autonomia” e “não pode ser partidária”. Pessoalmente, queria Lula presidente de novo. Afirma que essa, no entanto, é sua única atual certeza. “Não tenho dúvida de que a luta dos negros no Brasil veio mais à tona depois do presidente Lula”, explica Souza, que já votou também em Fernando Henrique Cardoso (PSDB). “Agora, se me perguntar: ‘E se Lula não for candidato?’ Aí lhe digo que não sei.”

Euzébio
‘Não tenho dúvida de que a luta dos negros no Brasil veio mais à tona depois do presidente Lula’, explica Euzébio Souza, 45 anos (Shai Andrade/VEJA)

Os mais engajados — grupo que se destaca na cidade e influencia outros votos — avisam, entretanto, que não decidem candidato pela classificação de raça e cor do IBGE. “Hoje assumo que sou negra com o maior prazer”, diz Lusinete, avisando que o engajamento trouxe consciência. “Mas, se for escolher por ser negro ou branco, acho que estou sendo racista.”

Souza acredita que essa influência é indireta. “Vou procurar é uma pessoa que de fato abrace a causa e a responsabilidade de mudança. Tenho essa visão de luta, de querer avançar mais, de não regredir para o que nós e nossos antepassados já vivemos”. Para ele, a saída para seu município “pobre e sempre sofrido” é a mobilização. Foi o que conseguiu minimizar problemas básicos, como o abastecimento de água, questão crítica nos pedaços do Nordeste castigados pela seca.

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“A gente parou a pista lá na BR (a estrada BR 116), chamou a atenção, contou nossa história e, aí, a promessa da água veio, com cisterna para implantar no pé da casa”, lembra Manoel de Brito Filho, conhecido como Reizinho. O caso ocorreu durante o primeiro mandato de Lula. Reizinho tem 57 anos e hoje produz beiju, iguaria crocante de tapioca, preparada com a mandioca local. Ele diz que não tinha experiência para fazer o produto e adquiriu conhecimentos técnicos graças à associação de sua comunidade quilombola. Admite que estudou “muito pouco”, porque ele e os nove irmãos precisavam ajudar os pais na roça desde muito pequenos. Mais velho, foi trabalhar em outras cidades. “Peguei família logo aos 20 anos de idade e tive que voltar. Casei com uma vizinha daqui mesmo”, lembra.

Brito Filho afirma que já votou “um bocado” e não presta mais muita atenção ao partido. “Não acho que devo olhar para isso, mas para o perfil do candidato e para o feito também”, explica, acrescentando que quem vota sem esse cuidado, em troca “de algumas merrecas que dão”, acaba deixando todos em situação pior. Com o ex-presidente Lula, acha que acertou em cheio, mas não sabe quem escolher sem ele no páreo. “Lula preso hoje dói muito na gente. Sabe por que digo isso?”, pergunta. “A água era uma das coisas mais difíceis para nós. Ainda não está bom, mas digamos que melhorou a nossa qualidade de vida.”

É o mesmo sentimento de Marielza Jorge de Almeida Medeiros, 28 anos. Ela nasceu e se criou em Gavião. Quando casou, há cinco anos, foi morar em Subaé, povoado ainda não reconhecido como quilombola. Tem um filho pequeno e está desempregada. Diz que se envolveu em movimentos sociais desde nova, graças à influência da irmã mais velha. Marielza completou o ensino médio e pensa em uma graduação. “Talvez educação física ou pedagogia.” Acredita que sua maior dificuldade hoje é arrumar trabalho. Apesar da falta de oportunidades em sua terra, não quer se mudar. Conta que já foi babá em Feira de Santana, cidade grande mais próxima, só para juntar dinheiro e ter uma “festa bem arrumadinha” de casamento.

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Ainda se diz indecisa nas eleições que se aproximam. Em Lula, contudo, acha que votaria. “Muitos, inclusive meu marido, puderam cursar uma universidade através dos programas que ele aprovou e deram acessibilidade para a gente hoje”, justifica Marielza, lembrando, em seguida, de uma amiga que está se formando em direito e um vizinho estudante medicina. Sem Lula, não garante voto no partido do ex-presidente. “Não basta vir um candidato sendo do PT. Se não tocar em mim que vai fazer o bem a todos, não vale votar por votar”, diz. Mas pondera: “Aqui o PT é uma base, porque foi o que sempre ajudou os movimentos sociais”.

É o que indicam as urnas. Para seu segundo mandato, em 2006, Lula se elegeu em Antônio Cardoso com 82,5% dos votos, um porcentual maior do que os pouco mais de 60% obtidos junto a todo o eleitorado brasileiro em disputa com Geraldo Alckmin (PSDB). Na primeira vitória, em 2002, já havia alcançado 74,2% no município contra o tucano José Serra. Nas eleições seguintes, a ex-presidente Dilma Rousseff (PT) seguiu com índices locais na casa dos 80%. O atual prefeito, Antonio Mário Rodrigues de Sousa, ou Toinho Santiago, é da mesma legenda, assim como três dos nove vereadores.

Presidente da Associação Comunitária Rural de Santo Estevão Velho, distrito de Antônio Cardoso, Ana Paula Aragão Cerqueira, 37 anos, começa a conversa parecendo que será uma voz dissonante. “O povo reclama ‘porque Lula isso, Temer aquilo, porque Dilma, porque Aécio…’. Para mim, está tudo no mesmo pacote. Não sou dessas de levantar a bandeira de ninguém.”

Não demora, porém, para ela confessar uma consideração especial pelo preferido dos conterrâneos. “Hoje, politicamente, tenho discernimento para saber que Lula foi o presidente que mais fez para o povo, povo mesmo, o povão, o povo brasileiro.” Por isso, admite que poderia votar nele, mas não tem “100% de certeza”. “Nem sei se ele teria mais condições físicas para isso também.”

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Casada com um vaqueiro, mãe de dois meninos, de 6 e 17 anos, ela se declarou no Censo da cor parda. Conta que, quando criança, ia à escola depois de comer “só abóbora com leite”. Mais velha, chegou a parar de estudar durante dois anos, mas voltou até se formar em licenciatura em matemática. Fez até pós. “Tive força de vontade e fui a primeira da família a ter nível superior. Hoje, outros têm.” Ela já foi diretora de escola, mas está desempregada no momento. Atualmente, dá aulas de reforço escolar em sua casa e toca uma horta comunitária.

Ela acredita que hoje possui experiência para não escorregar mais nas escolhas eleitorais, como no primeiro pleito do qual participou. “Foi o voto mais errado da minha vida. Lembro até hoje que coloquei lá Geddel Vieira Lima (PMDB). Meus Deus do céu! Eu tive orgulho”, diz ela que votou para deputado federal no político, que atualmente está preso e aguarda julgamento pelo escândalo dos 51 milhões de reais encontrados num apartamento em Salvador.

Ana Paula
‘Hoje, politicamente, tenho discernimento para saber que Lula foi o presidente que mais fez para o povo, povo mesmo, o povão, o povo brasileiro’, diz Ana Paula Aragão Cerqueira, 37 anos (Shai Andrade/VEJA)

Já Marcio Conceição Soares de Souza, 43 anos, diz que está mais do que decidido sobre o que fazer nas próximas eleições. “Neste ano, eu apoio o candidato que Lula botar, porque ele botou o alimento na mesa de todo mundo”, afirma o hoje porteiro de escola municipal. Casado, com três filhos, ele se vira ainda como apicultor ao lado de um grupo da comunidade de Paus Altos, que atua em sistema colaborativo.

Acredita que é bom o candidato ter afrodescendência, mas não determina seu voto. “Meu vereador mesmo é negro e eu gosto da minha origem também.” Embora repita que não se fixa em partido, não considera má ideia ter na presidência alguém da mesma legenda do prefeito. “Acho que a coisa pode melhorar mais para o município”, prevê.

 

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