Como VEJA antecipou há duas semanas, o tenente-coronel Mauro Cid começou a confessar seus pecados. Pelo que já se sabe até agora, o então ajudante de ordens de Jair Bolsonaro viajou para os Estados Unidos acompanhado de um conjunto de presentes que o presidente havia recebido durante o mandato — duas esculturas, dois relógios e dois kits de joias. A Polícia Federal afirma que, lá, o coronel encaminhou os itens para avaliação com o intuito de vendê-los. Descobriu que as esculturas, apesar de douradas, eram de latão e não tinham valor monetário. Já os relógios — um Rolex e um Patek Philippe — valiam um bom dinheiro. Eles foram vendidos por 68 000 dólares, o equivalente a 332 000 reais. Os kits de joias chegaram a ser encaminhados a uma loja especializada em leilões, mas a transação teve de ser interrompida.
Em março, quando surgiram as primeiras notícias sobre a tentativa de Bolsonaro de se apoderar dos presentes, o grupo ligado ao ex-presidente montou uma espécie de operação limpeza para apagar os rastros do negócio que não deu certo. Para os advogados do ex-presidente e do coronel, eles não fizeram nada de mais. Cid, como um militar disciplinado, apenas teria cumprido ordens do chefe ao providenciar o envio das joias ao exterior e negociar a venda delas. Já Bolsonaro afirma que não tinha interesse em ficar com os presentes valiosos e, sem saber o que fazer com eles, pediu ao seu subordinado que resolvesse, desse um destino a elas. O coronel teria então resolvido o problema da maneira que achou mais correta. A polícia afirma que Cid usou a conta bancária do pai, o general da reserva Mauro Lourena Cid, para receber nos Estados Unidos os dólares arrecadados com a venda dos relógios. O valor correspondente teria sido sacado e encaminhado a Jair Bolsonaro. A PF tem evidências de que ao menos parte do dinheiro foi sacada em dólar e nos Estados Unidos.
Protagonista desse enredo ignóbil, Mauro Cid foi preso há quatro meses, quando se descobriu a primeira de uma série de tramoias do coronel. Antes de deixar o Planalto, ele falsificou o próprio cartão de vacinação, o da esposa, o das filhas e o de Jair Bolsonaro, atestando que todos haviam se imunizado contra a Covid-19. Nos telefones do ajudante de ordens foram encontradas mensagens de teor conspiratório e textos apócrifos com o roteiro do que seria um golpe para anular as eleições presidenciais do ano passado, além de documentos que revelaram o envolvimento dele na venda dos presentes. Cid e Bolsonaro estariam operando juntos em todos esses casos — da falsificação à venda das joias. Para a polícia, trata-se de uma organização criminosa. Para os acusados, nada além de infrações administrativas praticadas sem intenção. É essa a tese de defesa dos investigados — especialmente Mauro Cid, que, depois de um longo silêncio, começou a dar sua versão sobre os fatos.
Na segunda-feira 28, o coronel permaneceu dez horas na sede da Polícia Federal. De acordo com os advogados dele foi o início da confissão. Os detalhes do que o militar disse no depoimento não foram divulgados. Familiares do ex-ajudante de ordens, no entanto, contaram a VEJA que, entre outras coisas, ele decidiu assumir sua participação no caso das joias. “O GADH (Gabinete Adjunto de Documentação Histórica, órgão da Presidência responsável pelo acervo dos presidentes) disse que podia vender. Então naquele momento o entendimento era que se podia vender. É preciso considerar todos os lados antes de crucificar alguém. Teve algum dinheiro perdido? Não. Tem alguma joia perdida? Não”, disse uma pessoa próxima ao coronel. Além disso, Cid quer deixar claro que não tinha qualquer poder decisório. Acima dele havia ministros, o chefe de gabinete, os assessores palacianos. Como ajudante de ordens, seu papel era cumprir o que o chefe determinava. Em outras palavras, fez apenas o que Jair Bolsonaro o incumbiu de fazer.
VEJA conversou com o antigo chefe do GADH do Palácio do Planalto, investigado no caso sob a suspeita de atuar em conluio com Bolsonaro e seus assessores para o desvio dos presentes. Marcelo Vieira, que cuida do inventário presidencial desde o governo de Michel Temer, confirmou que, de fato, havia o entendimento no órgão de que determinados presentes dados ao presidente da República se enquadravam na categoria de “personalíssimo”, ou seja, faziam parte do acervo pessoal do mandatário. Em tese, portanto, poderiam ser negociados, desde que fossem seguidos alguns protocolos. Os relógios, por exemplo, poderiam ser vendidos aqui ou mesmo no exterior, mas antes Bolsonaro deveria ter comunicado sua intenção à União. “Isso tem de ser um procedimento formal, do gabinete pessoal do presidente, mandar para a diretoria, para ela convocar a Comissão Memória. Não fomos comunicados de nada disso”, diz Vieira, acrescentando que a operação, se aconteceu da maneira como foi noticiada, teria sido irregular sob o ponto de vista administrativo.
As joias, os relógios e as esculturas voaram para os Estados Unidos na surdina e só retornaram ao país depois que o caso começou a ganhar dimensão de escândalo. “O período que entremeou o recebimento dos presentes e sua oferta de depósito junto ao Tribunal de Contas da União por iniciativa desta defesa não tem qualquer relevância jurídica, na medida em que, uma vez suscitada a dúvida quanto aos critérios de catalogação, os bens foram imediatamente colocados à disposição da Corte de Contas, até decisão final de mérito sobre a propriedade”, diz o advogado Paulo da Cunha Bueno, que defende Bolsonaro no caso das joias. O Rolex, como se sabe, foi recomprado por Frederick Wassef, um dos advogados do ex-presidente, para ser devolvido à União — tudo supostamente feito sem o conhecimento de Bolsonaro. A defesa vai sustentar que o ex-mandatário delegava tarefas aos subordinados sem se preocupar com os detalhes. Na falta de uma lei clara sobre o que poderia ou não ser levado pelo presidente de turno ao fim do mandato, Bolsonaro teria seguido as recomendações do GADH.
“O político brasileiro está muito acostumado a usar a estratégia de toda vez que é repreendido dizer que não sabia. Eles têm plena consciência de que existe a distinção entre o público e o privado, mas falta compromisso moral”, diz a professora de ética e filosofia política da UFRJ Maria Clara Dias. De fato, são recorrentes os escândalos envolvendo autoridades que se aproveitam dos cargos que ocupam para obter alguma vantagem pessoal, sem que isso resulte em qualquer tipo de punição (veja o quadro). Na quinta-feira 31, a Polícia Federal intimou a prestar depoimento no caso das joias o ex-presidente, a ex-primeira-dama Michelle, o coronel Cid, o pai dele, general Cid, os advogados Frederick Wassef e Fabio Wajngarten, além de Marcelo Câmara e Osmar Crivelatti, ex-assessores do Planalto. A ideia era interrogá-los ao mesmo tempo para tentar colher eventuais contradições. À exceção do ajudante de ordens, todos usaram o direito constitucional de permanecer em silêncio.
Publicado em VEJA de 1º de setembro de 2023, edição nº 2857