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Câmara Municipal de São Paulo é transformada em templo religioso uma vez por semana

Levantamento mostra que vereadores fizeram 24 atos de cunho religioso nos primeiros seis meses deste ano

Por Da Redação
4 jul 2016, 10h29

A Câmara Municipal de São Paulo tem sido usada para encontros religiosos pelo menos uma vez por semana neste ano. Levantamento feito com base na agenda de eventos do Cerimonial da Casa mostra que ocorreram 24 atos de cunho religioso entre janeiro e junho, com custos pagos pelo Legislativo. Os vereadores e entidades envolvidas dizem que exercem a liberdade de expressão nesses encontros e afirmam não cometer nenhuma ilegalidade. Especialistas em Direito Constitucional discordam, afirmando que o espaço público não pode ser usado para ritos religiosos.

Com reuniões mensais desde 2014, o Grupo de Oração Ministério Ágape Reconciliação, ligado à Igreja Bola de Neve, chega a reunir 200 participantes no Auditório Prestes Maia, no primeiro andar do Palácio Anchieta. Os encontros duram três horas, têm pregação, momentos fervorosos de oração – em que os fiéis dão as mãos, fecham os olhos e pedem a intervenção do Espírito Santo – e muita doutrina. O grupo ocupa o espaço a pedido do vereador Eduardo Tuma (PSDB), autor do projeto de lei, vetado nesta sábado pelo prefeito Fernando Haddad (PT), que iria instituir o “Dia de Combate à Cristofobia”.

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“Se alguém vier falar para vocês que o islamismo é uma religião de paz, é mentira. Eles fazem todo cristão renunciar a Jesus Cristo. Todos são convocados para a matança de cristãos”, afirmou um homem ao microfone em um dos encontros do Ágape, em fevereiro.

As pregações também não deixam de tratar de temas políticos. “Quero pedir perdão. A gente sabe que existe algo chamado Foro de São Paulo, e sabemos que nosso governo atual [na época, de Dilma Rousseff] está envolvido nisso. Nós te pedimos perdão por alianças com países que estão tentando implantar o comunismo, que já estão em processo de doutrinação desde a época em que houve ditaduras em toda a América Latina. Pedimos que tende piedade de nós, porque essa é uma doutrina feita por um satanista chamado Karl Marx”, afirma outro homem, no encontro.

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Os discursos também trazem a visão religiosa para assuntos ligados aos direitos civis: “Pedimos perdão por todo tipo de casamento gay, de doutrinação”, afirmou outro fiel no evento.

No dia 18 de abril, o momento evangélico ocorreu no Salão Nobre, no 8º andar do prédio que fica no Viaduto Jacareí, centro da capital. Iniciativa de Noemi Nonato (PR), missionária da Assembleia de Deus, autora do projeto de lei que incluiu o Dia do Círculo de Oração no calendário de festas paulistano. Em certo momento, um grupo de seis mulheres rouba a cena, cantando e dançando uma animada coreografia. “O sonho não pode acabar, Deus está sempre ao teu lado”, entoavam. “É hora de se levantar, não desista de lutar, o escolhido de Deus não para não, mesmo que esteja em uma prisão.”

Em encontro chamado “Louvorzão Fé São Paulo”, no dia 10 de junho, no plenário Primeiro de Maio – local onde os projetos de lei são discutidos e votados pelos vereadores -, a ideia foi homenagear “os representantes da música gospel”. Foi um evento proposto pelo vereador Jean Madeira (PRB), pastor da Igreja Universal do Reino de Deus. “Se diziam que não tinha como acontecer isso na Câmara, pronto. Já está acontecendo. Uma salva de palmas para Jesus”, disse o parlamentar.

Madeira pregou, cantou, orou e reclamou que fez o pedido para que houvesse música gospel na Virada Cultural, mas não foi atendido. “Queremos fazer e avançar cada vez mais na cidade de São Paulo.”

Procurada, a Presidência da Câmara informou que os vereadores têm direito de requisitar os auditórios para eventos particulares – foram quase oitenta somente neste ano. E destacou que os assuntos tratados nas cerimônias são de responsabilidade do parlamentar que convocou o encontro.

Especialistas em Direito Constitucional não concordam com o uso que os vereadores têm dado aos espaços públicos da Câmara Municipal. A vice-presidente do Instituto dos Advogados de São Paulo (IASP), Maria Garcia, por exemplo, cita o artigo 19 da Constituição Federal para dizer que é vedado ao Estado a participação em qualquer tipo de culto ou evento religioso. “As religiões têm seus ritos e é preciso verificar se o que acontece nesses eventos segue o rito para ser chamado de culto”, afirma Maria. “Se há conotação de culto religioso nesses eventos, com rodas de oração, canções de louvor, testemunho de fiéis, o espaço público não deveria ser usado”, diz. Ela faz ressalva que a associação entre o poder público e as entidades religiosas é permitido se o objetivo é atender o bem comum.

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Já o presidente da Comissão de Direito Constitucional da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) seção São Paulo, Roberto Dias, vai além. “Imagine que, em uma escola se pedisse uma oração antes de a aula começar, algo assim. É inadmissível. É o mesmo princípio”, diz. Segundo Dias, o Brasil é um Estado laico desde a primeira Constituição republicana, do século 19. Ele explica que o Estado brasileiro – e a regra vale para a municipalidade de São Paulo – deve tanto assegurar a liberdade para a prática de qualquer religião, de um lado, quanto evitar a interferência para privilegiar as entidades religiosas. “Se é aberto um espaço para uma religião, o equilíbrio do Estado estaria em abrir para todas elas, caso contrário um grupo estaria sendo privilegiado”, afirma.

O vereador Eduardo Tuma, que abriu um dos plenários do Legislativo para o Ministério Ágape Reconciliação para uma reunião por mês, afirma que obedece a lei ao requisitar o espaço. “Respeito absolutamente a liberdade de expressão e a liberdade religiosa”, diz ele. Segundo Tuma, “essas entidades têm forte atuação no terceiro setor, elas agem em prol do interesse público e chegam aonde o Estado não alcança, como a cracolândia, a entrega de cobertores a sem-teto no frio.”

Ele afirma não ver problemas nas falas dos fiéis durante os cultos nem no fato de haver orações em locais cuja manutenção e todo o custeio é feita com dinheiro público. “Essas entidades trazem para a Câmara as próprias práticas”, diz. “Seria natural que, em um evento de músicos, houvesse música”, observou.

O Ministério Ágape disse, por meio de nota, que a finalidade de seus eventos é “debater assuntos de interesse da cidade quanto ao papel social desenvolvido pelas entidades religiosas, enquanto atuantes no terceiro setor, em prol da sociedade paulistana”. Procurado, Jean Madeira (PRB), vereador que convocou o evento “Louvorzão” na Câmara Municipal, não foi encontrado. A vereadora Noemi Nonato (PR) também não foi localizada nem em seu celular nem em seu gabinete, quando ela foi procurada.

(Com Estadão Conteúdo)

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