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Bruno e Dom: investigações sobre mortes revelam conexões com poder público

Para a PF, a organização transnacional por trás dos assassinatos tem elos com servidores, políticos locais e até com a cúpula da Funai na gestão Bolsonaro

Por Victoria Bechara 28 jan 2024, 08h00

Foi na sede da Polícia Federal em Brasília, a mais de 3 000 quilômetros de Atalaia do Norte (AM), onde o indigenista Bruno Pereira e o jornalista britânico Dom Phillips foram mortos em junho de 2022, que a investigação sobre o caso finalmente começou a caminhar. Nos meses em que esteve sob a responsabilidade da polícia do Amazonas, o inquérito andou a passos lentos. A transferência, em abril de 2023, levou a novas prisões e ao indiciamento do peruano Ruben Dario da Silva Villar, o Colômbia, apontado como mandante do crime e chefe de uma gangue que explora várias atividades ilegais na Amazônia. Os investigadores descobriram ainda vínculos importantes entre o duplo homicídio e a execução de outro indigenista, Maxciel Pereira dos Santos, morto a tiros em 2019, em Tabatinga (AM). Passados quase vinte meses, a PF agora avança na apuração sobre o funcionamento dessa organização, suspeita de orquestrar os três assassinatos, esmiuçando suas conexões com servidores públicos, políticos locais e até com a cúpula da Funai na gestão Bolsonaro.

ACUSADO - Colômbia: laços políticos e suspeito de ordenar execuções
ACUSADO - Colômbia: laços políticos e suspeito de ordenar execuções (./Reprodução)

O fio da meada puxado pelas investigações não é pequeno. Para a PF, a organização por trás dos assassinatos é transnacional e atua com pesca e caça ilegais, lavagem de dinheiro, sonegação fiscal, desvio de recursos públicos e corrupção. A investigação em andamento já concluiu que o grupo chefiado por Colômbia também foi responsável pela execução de Maxciel, que era amigo de Bruno. Ambos eram servidores da Funai e atuavam no Vale do Javari, região que abriga o maior número de povos indígenas isolados no mundo. Maxciel estava dirigindo uma moto quando foi atingido com dois tiros na cabeça. Ninguém foi preso. O inquérito ficou parado por meses e acabou sendo retomado em agosto de 2022, após as mortes de Bruno e Dom. A motivação seria a mesma: o trabalho do jornalista e dos indigenistas na proteção das terras e na fiscalização de pesca e caça ilegais prejudicava a atividade lucrativa da organização. Agora os dois inquéritos avançam juntos, com compartilhamento de provas e depoimentos que ajudam a jogar luz sobre uma quadrilha que atua no Brasil, nas fronteiras.

Considerado peça-chave nesse esquema de ilegalidades, Colômbia tem conexões com o poder político local. Nos últimos meses, a PF colocou no alvo aliados do suposto mandante. No dia 18 de janeiro, prendeu Jânio Freitas de Souza, apontado como seu informante e braço direito. Ele era funcionário na prefeitura de Atalaia do Norte, onde ocupava o cargo de auxiliar de serviços gerais, com salário de 1 200 reais — seu nome deixou de integrar a folha de pagamento em agosto de 2022, logo após os assassinatos de Bruno e Dom. Em depoimento à PF, ao qual VEJA teve acesso, testemunhas afirmaram que Colômbia tem contratos com as prefeituras de Atalaia do Norte, Tabatinga e Benjamin Constant para transporte fluvial, incluindo o traslado de professores até comunidades ribeirinhas e indígenas. Ele possui pelo menos 22 embarcações em seu nome. A suspeita é de que os contratos sejam firmados por meio de empresas de fachada ou laranjas. Um relatório da Polícia Judiciária mostra que três de sete empresas que fecharam contratos com as prefeituras têm servidores ou ex-servidores de Benjamin Constant como proprietários. Nenhuma empresa contratada tem embarcações vinculadas ao seu CNPJ. Outro ponto que reforça as suspeitas é que a maioria não tem funcionários registrados.

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As conexões de Colômbia com o poder público não param por aí. Apontado como um dos integrantes da gangue do peruano, Otavio da Costa Oliveira, irmão de dois dos executores de Bruno e Dom — que já viraram réus —, foi contratado como microscopista na Secretaria Municipal de Saúde de Atalaia em janeiro de 2021, com salário de 1 750 reais. Ele ficou no cargo até agosto de 2022, logo após os crimes. Interceptações da PF mostram ainda 41 telefonemas entre Colômbia e Davi Barbosa de Oliveira durante agosto e setembro de 2019 — ele foi procurador do município de Benjamin Constant em 2022 e constava como secretário da Casa Civil municipal, com salário de 9 000 reais, até novembro de 2023. Davi chegou a se apresentar como advogado de Amarildo, um dos assassinos confessos, mas recuou depois da repercussão negativa. Além disso, há registros de doações de 5 000 reais de Colômbia para a campanha eleitoral do prefeito de Benjamin Constant, David Bemerguy (MDB), em 2016.

As investigações sobre o braço político da organização criminosa também chegaram a autoridades de fora do Amazonas. Em maio de 2023, a PF indiciou o ex-presidente da Funai Marcelo Xavier e seu vice Alcir Amaral Teixeira por homicídio qualificado e ocultação de cadáver, em razão de omissão no caso de Bruno e Dom. Documentos mostram que servidores relatavam ameaças, incluindo ataques a tiros em postos de fiscalização, ao menos desde 2019. O próprio Bruno Pereira enviou um ofício à PF em agosto, um mês antes da morte de Maxciel, para pedir socorro. Entre as evidências utilizadas pela PF está a ata de uma reunião em outubro de 2019, no Vale do Javari, para discutir a situação de insegurança que se instaurou após o assassinato do servidor. Na ocasião, Alcir Teixeira afirmou que não havia materialidade nas ameaças relatadas. Em uma reviravolta, as investigações contra a cúpula da Funai foram suspensas em novembro de 2023 pelo desembargador Ney Bello, do TRF1, que argumentou que Xavier “não possuía ingerência direta sobre as forças de segurança” e que os indiciamentos se basearam só no cargo ocupado por ele. A decisão foi considerada um retrocesso pela PF, já que prejudica a continuidade da apuração sobre o papel de agentes públicos.

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DOR - As viúvas de Dom, Alessandra Sampaio (à esq.), e de Bruno, Beatriz Matos (à dir.): luto no Vale do Javari, palco das mortes
DOR - As viúvas de Dom, Alessandra Sampaio (à esq.), e de Bruno, Beatriz Matos (à dir.): luto no Vale do Javari, palco das mortes (Edmar Barros/Amazônia Latitude/.)

Enquanto isso, os três pescadores acusados de matar Bruno e Dom aguardam julgamento. A Justiça Federal de Tabatinga aceitou a denúncia por homicídio qualificado e ocultação de cadáver e determinou, em outubro, que Amarildo da Costa Oliveira, Oseney da Costa Oliveira e Jefferson da Silva Lima sejam levados a júri popular, mas a defesa recorreu. Amarildo e Jefferson confessaram o crime, enquanto Oseney negou. A estratégia da defesa é argumentar que a dupla foi ameaçada por Bruno Pereira e agiu em legítima defesa. Por conta disso, os advogados negam qualquer relação dos réus com Colômbia e afirmam que não houve mandante. Interceptações telefônicas da PF, porém, mostram que só entre 2021 e 2022 houve 284 registros de chamadas entre Colômbia e Amarildo. A defesa reclama da dificuldade em obter informações e fez uma solicitação para ter acesso ao inquérito, que corre em sigilo, na última terça, 23.

A descoberta de uma complexa rede de criminosos em torno das mortes de Dom e Bruno só reforça a situação de emergência em que se encontra a segurança na Amazônia, onde há mais de duas dezenas de facções atuando, inclusive estrangeiras. A taxa média de mortes violentas intencionais foi 45% superior à média nacional em 2022. A região se consolida como um dos maiores desafios do novo ministro da Justiça, Ricardo Lewandowski. Após as mortes de Bruno, Dom e Maxciel, lideranças indígenas e servidores da Funai continuam relatando clima de insegurança e ameaças no Vale do Javari. A reação do poder público tem que ser vigorosa, a começar pelo completo esclarecimento dos três homicídios — não só de quem matou, mas de quem mandou matar e de quem acobertou essa teia de crueldades na região.

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Publicado em VEJA de 26 de janeiro de 2024, edição nº 2877

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