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A repetição da tragédia de Manaus na pandemia

Desarticulação política, estrutura precária de saúde, imprudência da população e até uma nova variante do vírus recolocam a capital em situação crítica

Por João Pedroso de Campos Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO Atualizado em 25 mar 2021, 21h44 - Publicado em 15 jan 2021, 06h00

Algumas das cenas chocantes do período mais dramático da pandemia da Covid-19 no Brasil foram vistas em Manaus, todas na esteira de um colapso dos sistemas de saúde e funerário. Entre abril e maio do ano passado, correram o país imagens de pacientes dividindo espaço em uma unidade semi-­intensiva com um cadáver envelopado, um homem recebendo oxigênio com a cabeça dentro de um saco plástico improvisado como respirador e caixões sendo depositados em valas coletivas nos cemitérios saturados da capital do Amazonas. Após um período de retração nas ocorrências, o fantasma da tragédia voltou a assombrar a cidade: a média móvel de mortes quadruplicou e a taxa de casos quase triplicou nas duas últimas semanas (veja o quadro). Os hospitais estão novamente apinhados, com quase 90% dos leitos adultos de UTI ocupados. Pior: o índice de letalidade do coronavírus está em mais de 4%, quase o dobro da taxa nacional, e a média diária de enterros cresceu 80%.

CENA COMUM - Cemitério lotado: o prefeito quer covas verticais e câmaras frias -
CENA COMUM - Cemitério lotado: o prefeito quer covas verticais e câmaras frias – (Michael Dantas/AFP)

A forte recaída da pandemia em Manaus é resultado de um coquetel de fatores que incluem desde questões climáticas sazonais — como a chegada do chamado “inverno amazônico”, temporada de chuvas em que crescem os casos de doenças e vírus respiratórios — até, possivelmente, situações extraordinárias, como a descoberta de uma variante local do vírus, detectada pelo Japão após quatro cidadãos daquele país terem retornado do Amazonas. O caso incomodou até o premê britânico Boris Johnson, que chefia uma nação que já enfrenta uma mutação do vírus. “Estamos preocupados, estamos tomando providências e é justo dizer que ainda temos muitas dúvidas sobre essa variante brasileira”, disse ele na quarta-feira 13. Segundo Felipe Naveca, pesquisador da Fiocruz Amazônia, é provável que as mutações tenham ocorrido entre novembro e dezembro. “Chama bastante atenção, porque acumularam diversas mutações do tipo em pouco tempo”, afirma.

Muito além disso, outras três chagas, bastante evitáveis, estão por trás da crise anterior e da atual de Manaus: a desarticulação das autoridades, a falta de estrutura, de profissionais, de insumos médicos, e a incompreensão de parte da sociedade no combate ao problema. Em setembro, o alerta foi ligado com o aumento das internações na rede privada — uma das teses é de que a segunda onda foi iniciada pelos mais ricos, que haviam mantido maior isolamento no primeiro pico. Nessa época, empresários diziam ao governo que eram contra medidas de contenção, com base na teoria de que a cidade atingira a imunidade de rebanho. O então prefeito, Arthur Virgílio (PSDB), defendeu um lockdown, o que foi rechaçado pelo governador Wilson Lima (PSC). Quando o estado decidiu anunciar medidas duras, já em dezembro, o prefeito foi contra. Protestos contra o fechamento do comércio fizeram Lima recuar. “Nunca o vi preocupado de verdade, é complicado falar com quem não fala sua língua”, diz Virgílio. “Manaus virou as costas à pandemia”, rebate Lima. Enquanto autoridades batiam cabeça, parte da população foi celebrar: no Natal, a fiscalização barrou ao menos duas festas clandestinas com 2 000 pessoas.

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Recém-empossado, o prefeito David Almeida (Avante) decretou estado de emergência e planeja construir covas verticais, instalando câmaras frigoríficas para abrigar corpos. Já o estado aumentou o número de leitos, de 457 para 1 164, mas depara com a falta de oxigênio líquido, cujo consumo passou de 176 000 para 850 000 metros cúbicos ao mês. Na quinta-feira 14, pacientes começaram a ser removidos para outras capitais. Em meio ao caos, o governo federal decidiu intervir da pior forma possível. Antes de o ministro da Saúde, Eduardo Pazuello, visitar Manaus nesta semana, a pasta enviou um ofício à prefeitura em que diz ser “inadmissível” a não aplicação do tratamento precoce, com o uso de hidroxicloroquina, azitromicina e ivermectina, cuja eficácia não é comprovada. Tanto Almeida quanto Lima são favoráveis ao uso desses medicamentos. “Se não for esse tratamento, não tem outro”, afirma o prefeito. Depois de pressionar a prefeitura, a União vai enviar 1 500 cilindros de oxigênio, 78 respiradores e 500 profissionais. Pazuello também prometeu que Manaus terá prioridade na vacinação.

A conjunção de fatores políticos, estruturais, comportamentais, sazonais e excepcionais vai, enfim, favorecendo a expansão do vírus na cidade, que vive a desconfortável situação de, pela segunda vez, ser epicentro nacional da tragédia. “No mundo, a única experiência na pandemia com dois gravíssimos picos de mortalidade é Manaus”, diz Jesem Orellana, epidemiologista da Fiocruz Amazônia. Pelo pior ângulo possível, a cidade ganha destaque: tornou-se o exemplo mais gritante do pouco que o país aprendeu com os erros no combate à pandemia.

Publicado em VEJA de 20 de janeiro de 2021, edição nº 2721

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