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A caldeira do diabo

Ambição nuclear, intervenção em outros países, sufoco com sanções econômicas e choques com o presidente americano: por que o Irã assusta o mundo

Por Vilma Gryzinski Atualizado em 30 jul 2020, 19h46 - Publicado em 24 Maio 2019, 07h00

Escondidos debaixo da terra, sob um escudo com espessura de mais de 10 metros de concreto, milhares de máquinas de formato vertical chamadas centrífugas giram a 1 500 revoluções por segundo. A base é no Centro Nuclear de Natanz, bem no coração do Irã, cercada por uma cadeia de montanhas como proteção extra. O giro alucinante empurra os átomos de urânio-235 para o centro da máquina e, assim, está aberto o caminho: a partícula do inferno pode passar para as fases seguintes do processo chamado enriquecimento e ser concentrada no núcleo esférico de mil sóis de uma bomba nuclear. Segundo os mais apavorados, pode também levar à batalha final, o Armagedom bíblico, a guerra do fim do mundo das profecias de Ezequiel e de São João Evangelista.

No começo da semana, o Irã anunciou que havia quadruplicado a produção de urânio enriquecido, ainda em proporção admitida pelo acordo nuclear gorado quando Donald Trump cumpriu uma promessa de campanha e retirou os Estados Unidos do jogo. Trump sempre disse que o acordo é ruim, fraco, permissivo, excessivamente complacente com o Irã e perigoso para os Estados Unidos e para o mundo ao prorrogar e apenas maquiar as absolutamente descaradas ambições bélicas do regime iraniano. Ele propõe negociar outro acordo e mandou um recado aos iranianos: “Liguem para mim”. Para reforçar a mensagem, e diante de movimentações suspeitas dos iranianos, redirecionou o grupo de ataque do porta-aviões Abraham Lincoln para o Golfo Pérsico, o “laguinho” mais volátil do mundo, por onde passam 40% do petróleo transportado por mar no planeta.

O URÂNIO É NOSSO - Enriquecimento nuclear, empobrecimento popular: bomba atômica é sinônimo de poder (Raheb Homavandi/Reuters)

Se tivesse soltado alguma das pragas apocalípticas, não teria provocado reações piores. Por parte das autoridades civis, militares e principalmente religiosas do Irã, um país bizarro que mistura práticas superficialmente democráticas com um sistema teocrático em que os aiatolás têm a palavra final em tudo, vieram os surtos, ameaças e provocações habituais. Além de algumas mais específicas, como manobras militares sub-reptícias e pequenos mas simbólicos atos de sabotagem com drones ou cargas explosivas instaladas por mergulhadores em petroleiros estrangeiros — um aviso da desgraça que pode acontecer. Por parte dos adversários de Trump, o que significa toda a elite política, jornalística, acadêmica e artística, não só nos Estados Unidos como em países alinhados ou periféricos, o surto foi maior ainda. Evocando uma frase clássica do grande comentarista político Michael Moore (o.k., é um bom documentarista, embora do mundo da fabulação): “Ele vai acabar matando todos nós”.

Por causa da tradição bíblica no mundo ocidental, transmitida ao longo dos séculos mesmo sob a forma deturpada de narrativas populares ou de filmes-catástrofe de Hollywood, tudo o que acontece de ruim nessa região do mundo é interpretado como um sinal do apocalipse. “Fim do mundo”, no caso específico, é o dos inimigos de Deus, pois “uma grande multidão” dos bons se salvará, mas as referências apocalípticas ultrapassam o que está escrito nos livros santos e entram no escatológico terreno do inconsciente coletivo: se teve começo, terá fim, diz uma mensagem cravada do software humano.

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OBVIEDADE - Como sempre, virão os urros de “morte aos EUA”, “morte a Israel” (Thomas Coex/AFP)

Os xiitas, a corrente muçulmana majoritária no Irã e minoritária ou não tão absoluta no resto do mundo islâmico, também têm sua própria versão de um evento apocalíptico, a volta do Mahdi. Nessa narrativa messiânica, o Imã Oculto, desaparecido há 1 000 anos, vai se revelar de novo para instalar um reinado islâmico perfeito. É claro que antes haverá umas batalhas épicas para implantar a verdade entre os relutantes inimigos, os sunitas. O oposto, evidentemente, tem peso mais acachapante ainda: o maior inimigo do Estado Islâmico, que atraiu fanáticos do mundo inteiro para uma guerra santa na Síria e no Iraque, é a “heresia” xiita. Mais do que uma comparação entre católicos (os xiitas, com seu mártir original, o belo e trágico Ali, considerado o herdeiro legítimo do profeta; práticas de autoflagelação e verticalização do clero) e protestantes (horrorizados diante do que consideram anárquicos desvios do monoteísmo estrito), talvez fosse possível fazer ilações entre trotskistas e stalinistas, com seus respectivos radicalismos entre uma minoria extremamente combativa e uma maioria brutal.

O objetivo desse desvio político-­religioso é lembrar o pano de fundo da verdadeira guerra de ideias e de armas também: a insuperável dicotomia entre xiitas e sunitas. No caso dos iranianos, existe o adicional étnico: eles são persas, com uma história de poder e glória de impérios passados. A espetacular expansão que levou a revelação divina ao profeta Maomé transmitida, na ponta da espada, por tribos árabes atrasadas e primitivas conquistou o último desses impérios pré-islâmicos, o sassânida, algo decadente porém de um requinte incomparável. A superioridade cultural dos persas se manteve na literatura, nas artes, no estilo de vida e nos debates religiosos nos quais o xiismo, com sua versão mais “aristocrática” de uma conexão via linhagem sanguínea direta com Maomé e ao mesmo tempo mais populista, através do culto ao martírio de Ali, acabou ganhando a parada. Principalmente depois que a dinastia dos safávidas (não confundir com os safados, de um outro país) implantou um império xiita praticamente na época em que o Brasil estava sendo descoberto, sob a égide daquele outro substantivo.

Numa das piores políticas de identidade de marca de todos os tempos, o nome Pérsia, de origem grega, foi trocado por Irã, a autodenominação do país em pársi, pelo penúltimo xá, um coronel do Exército que tomou o poder e o fabuloso Trono do Pavão (uma reprodução, o original foi roubado da Índia em 1739 e desapareceu) e impôs uma modernização nos moldes da de Ataturk na Turquia. Como o desmilinguido império otomano, a ex­-Pérsia era uma zona franca em que os impérios britânico e russo entravam e saíam à vontade. O coronel-imperador foi convencido a abdicar em 1941, e seu filho foi tirado do exílio quando um golpe derrubou o governo nacionalista e nacionalizante (e, ainda por cima, do petróleo, à época feudo britânico) de Mohammad Mossadegh.

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Ao contrário da mitologia dominante, o golpe patrocinado pela CIA, mais no campo da propaganda, deu errado, e os militares tiveram de intervir. Muita coisa deu errado para os Estados Unidos depois que, em 1979, uma revolução popular de inspiração religiosa, embora não unicamente, derrubou o último xá, Reza Pahlevi. “Estudantes” de uma ala islamita radical tomaram a embaixada americana, despiram diplomatas e funcionários, vedaram seus olhos e amarraram suas mãos. Ficaram 444 dias como reféns. Alguns sofreram torturas físicas e psicológicas, inclusive fuzilamentos simulados. Uma desastrosa tentativa de resgate acabou em fiasco militar, com helicópteros americanos trombando no deserto, e político. Jimmy Carter, o presidente que havia dado asilo ao xá deposto e moribundo por dever moral e negociado, secreta e inutilmente, com o aiatolá Khomeini para conseguir uma sucessão ordenada, perdeu a chance de ser reeleito. Ronald Reagan também pagou sua cota de humilhação. O nascente Hezbollah, movimento xiita armado e financiado pelo Irã, explodiu a embaixada americana e a base militar usada como Q.G. pelos fuzileiros navais enviados com a missão impossível de pacificar o Líbano. Os 241 mortos com um caminhão-­bomba, uma novidade relativa em 1983, permaneceram como recorde de vítimas em atentado terrorista até o 11 de setembro de 2001. A “maldição iraniana” também funcionou ao contrário: em 1988, a combinação entre um comandante agressivo, um falso positivo por dois radares e um prazo de quatro minutos para uma decisão levou o comandante de um cruzador americano no sempre perigoso Golfo Pérsico a aprovar o bombardeio de um avião inimigo. Não era um caça iraniano, como suposto, mas um avião comercial. Morreram 290 pessoas, incluindo 66 crianças.

Com a insegurança permanente das minorias e a autoconfiança dos que se consideram guiados por Alá, o Irã teocrático quer tudo: fazer a bomba, liderar o mundo muçulmano através do apoio à causa palestina, destruir Israel (Ali Khamenei, que tem o título de líder supremo, como nas sátiras de ficção científica, deu até prazo: vinte anos). Tem um projeto disciplinado, bem dirigido e inflexível, apesar dos delírios retóricos, que já colheu extraordinários sucessos: a ascensão do Hezbollah, hoje a força dominante no Líbano, e a quase impossível sobrevivência do regime aliado da Síria. Sem mover um turbante, conseguiu que os Estados Unidos de George Bush filho derrubassem seu maior inimigo regional, Saddam Hussein, e abrissem caminho para a ascensão dos xiitas iraquianos, um grupo diversificado mas com altíssimo nível de alinhamento político-religioso. Foram movimentações belicosas no Iraque que provocaram os Estados Unidos? Foi John Bolton, o bigodudo assessor de Segurança Nacional, que insuflou Trump a cuspir fogo? Foi Trump que resolveu sozinho aumentar a pressão, aproveitando que a economia vai bem, a campanha pela reeleição ainda não está a mil e fazer o Irã renegociar o acordo nuclear seria um belo troféu eleitoral? Ou foi o regime iraniano, sob o sufoco das renovadas sanções econômicas, que apostou num enfraquecimento do presidente americano, cujo impeachment é pedido pela oposição antes mesmo que ele dispare o primeiro tuíte do dia? Um dos mais incandescentes da fase atual levou um bocado de gente a correr de volta às profecias bíblicas: “Se o Irã quiser brigar, será o fim oficial do Irã. Nunca mais ameacem os Estados Unidos!”. O detalhe do ponto de exclamação e as seis palavras que o antecederam acabaram obscurecendo a conjunção condicional.

Por causa do estilo, abrasivo para dizer o mínimo, muitos acreditam que Donald Trump é um maluco louco por guerra. Tirando a parte altamente subjetiva do maluco, é exatamente o oposto: Trump usa a exibição do incomparável poder americano, representado no quadro atual pelo Abraham Lincoln com suas noventa aeronaves, além de cruzadores e contratorpedeiros carregados de Toma­hawks, justamente para não precisar recorrer ao uso da força. Tanto ele quanto a ala da direita que mais o apoia são extremamente contra o intervencionismo. Transferir o grupo de ataque para o “laguinho” também reassegura o movimento do petróleo, vital para o mundo inteiro, e dá alguma tranquilidade aos sauditas, os mais nervosos inimigos regionais do Irã (“Cortem a cabeça da serpente”, pedia reiteradamente o falecido rei Abdullah, segundo uma das memoráveis revelações do WikiLeaks). O governo Trump está esperando o fim do Ramadã, equivalente muçulmano ao que era a quaresma, em 4 de junho, para apresentar o que diz ser um inovador plano de paz para Israel e palestinos. Precisa da plena cooperação dos aliados árabes. Quanto aos iranianos, podem apostar até o último tapete persa que vão urrar, pedir “morte aos Estados Unidos” e “morte a Israel”, enriquecer mais urânio e empobrecer mais a própria população. E muita gente vai achar que está chegando a hora em que o príncipe Gog de Magog (a Rússia, na interpretação corrente), aliado a Meshech e Tubal (a Turquia), e a eterna Pérsia vão botar para quebrar, ao som de trombetas apocalípticas.

Publicado em VEJA de 29 de maio de 2019, edição nº 2636

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